Gilberto e sua morte anunciada
Horas antes de morrer, Gilberto recebeu uma carta. Estava escrita do seu próprio punho, assinada por ele mesmo e postada numa agencia de Alexandria, cidade na qual ele havia passado a infância. Na carta estavam descritos os acontecimentos desta tarde que desencadeariam inevitavelmente a sua morte. Sem muita surpresa, o funcionário público aposentado tirou seus óculos de leitura e com um suspiro dobrou o envelope e guardou-o no bolso da camisa.
Com passos resolutos, foi se dirigindo à porta, mas deteve-se por um instante ao ver sua esposa sentada em frente à televisão. Ela assistia um daqueles aborrecidos programas matinais enquanto tricotava uma meia de lã. Gilberto não quis perturbá-la, mas neste momento um nó em seu peito obrigou-o a um gesto demasiado afetuoso, que poderia ter denunciado toda a situação que ele se empenhava em esconder. Precipitou-se sobre sua esposa e lhe deu um carinhoso beijo na testa. Ela lhe pôs as mãos sobre as suas e soltou um leve suspiro, mas não disse uma palavra. Ele seguiu para a porta e saiu. Pretendia enfrentar sozinho a passagem.
O parque estava cheio. O domingo se anunciava como num desses filmes românticos do cinema americano. Famílias, crianças, cachorros, todos brincando alegremente, correndo de um lado para o outro, vivendo suas vidas de domingo. Gilberto tratou de escolher um local mais afastado, um banco em frente ao lago, de onde pudesse ficar olhando os pedalinhos, e lá se deixou ficar, esperando que os acontecimentos... enfim. Esperando que os acontecimentos acontecessem.
A manhã, porém, foi passando sem que se passasse nada de anormal e, após uma hora de espera, Gilberto começou a desconfiar de tudo. Estranhou, primeiro, a sua própria calma em tal momento, desconfiou em seguida do conteúdo da carta que examinou longamente em busca de um escorregão de caligrafia. Duvidou daquela manhã idílica e chegou à derradeira conclusão de que este parque nem sequer estava na mesma cidade que ele, já que morava em Montevidéu e este era o parque onde brincava quando criança, no Egito. Uma ponta de pavor passou por seu rosto, como numa tentativa de retomar o controle da situação, mas logo foi embora. Os pensamentos se confundiam e sua consciência turva ia e vinha como quem nada em gelatina. Uma criança veio correndo ao seu encontro.
Gilberto já estava quase adormecido, metido em uma realidade embaçada por sentidos que iam sumindo junto com a consciência. Ele, porém, reconheceu-se calmamente neste espelho do tempo. Tinha apenas 7 anos, abriu os bolsos do ancião desconhecido e tirou-lhe a carta que ali se encontrava e saiu correndo de volta.
Seguiram-se momentos confusos onde Gilberto, que se lembrava bem daquela tarde reviveu-a de perspectivas diferentes, como se sua alma estivesse a se multiplicar. Seria este o segredo da morte? A fusão do tempo, que passa a ser percebido em toda a sua plenitude de dimensão comum, com todos os momentos da vida? Passados e futuros podem ser vividos caso se logre alcançá-los?
Acompanhou a si mesmo menino, encaminhando-se ao correio, postando uma carta desconhecida num envelope desconhecido. De onde vinha a consciência? De onde vinham os atos? O sono, a tarde idílica, o sol e o quarto que deixara após ler a carta, onde também se encontrava, deitado na cama, solitário, tendo convulsões: tudo veio à tona uma última vez, junto com as lembranças de sua esposa morta há mais de 20 anos e uma súbita esperança do reencontro.
-Eram tantos reencontros...
Com passos resolutos, foi se dirigindo à porta, mas deteve-se por um instante ao ver sua esposa sentada em frente à televisão. Ela assistia um daqueles aborrecidos programas matinais enquanto tricotava uma meia de lã. Gilberto não quis perturbá-la, mas neste momento um nó em seu peito obrigou-o a um gesto demasiado afetuoso, que poderia ter denunciado toda a situação que ele se empenhava em esconder. Precipitou-se sobre sua esposa e lhe deu um carinhoso beijo na testa. Ela lhe pôs as mãos sobre as suas e soltou um leve suspiro, mas não disse uma palavra. Ele seguiu para a porta e saiu. Pretendia enfrentar sozinho a passagem.
O parque estava cheio. O domingo se anunciava como num desses filmes românticos do cinema americano. Famílias, crianças, cachorros, todos brincando alegremente, correndo de um lado para o outro, vivendo suas vidas de domingo. Gilberto tratou de escolher um local mais afastado, um banco em frente ao lago, de onde pudesse ficar olhando os pedalinhos, e lá se deixou ficar, esperando que os acontecimentos... enfim. Esperando que os acontecimentos acontecessem.
A manhã, porém, foi passando sem que se passasse nada de anormal e, após uma hora de espera, Gilberto começou a desconfiar de tudo. Estranhou, primeiro, a sua própria calma em tal momento, desconfiou em seguida do conteúdo da carta que examinou longamente em busca de um escorregão de caligrafia. Duvidou daquela manhã idílica e chegou à derradeira conclusão de que este parque nem sequer estava na mesma cidade que ele, já que morava em Montevidéu e este era o parque onde brincava quando criança, no Egito. Uma ponta de pavor passou por seu rosto, como numa tentativa de retomar o controle da situação, mas logo foi embora. Os pensamentos se confundiam e sua consciência turva ia e vinha como quem nada em gelatina. Uma criança veio correndo ao seu encontro.
Gilberto já estava quase adormecido, metido em uma realidade embaçada por sentidos que iam sumindo junto com a consciência. Ele, porém, reconheceu-se calmamente neste espelho do tempo. Tinha apenas 7 anos, abriu os bolsos do ancião desconhecido e tirou-lhe a carta que ali se encontrava e saiu correndo de volta.
Seguiram-se momentos confusos onde Gilberto, que se lembrava bem daquela tarde reviveu-a de perspectivas diferentes, como se sua alma estivesse a se multiplicar. Seria este o segredo da morte? A fusão do tempo, que passa a ser percebido em toda a sua plenitude de dimensão comum, com todos os momentos da vida? Passados e futuros podem ser vividos caso se logre alcançá-los?
Acompanhou a si mesmo menino, encaminhando-se ao correio, postando uma carta desconhecida num envelope desconhecido. De onde vinha a consciência? De onde vinham os atos? O sono, a tarde idílica, o sol e o quarto que deixara após ler a carta, onde também se encontrava, deitado na cama, solitário, tendo convulsões: tudo veio à tona uma última vez, junto com as lembranças de sua esposa morta há mais de 20 anos e uma súbita esperança do reencontro.
-Eram tantos reencontros...
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