O Escritor de Microcontos
O escritor de microcontos é um cara impaciente. Decidiu criar barba, pois não gosta de perder tempo. Esquece de cortar o cabelo em meio aos afazeres importantíssimos e volta e meia sai de casa sem se pentear por causa de um atraso imprevisto ou de um adiantamento de agenda. É um homem sóbrio e de maneiras apressadas, porém atencioso. Dedica sua extrema atenção ao minucioso planejamento de todas as suas tarefas. Está sempre decidindo, não o que pretende fazer, mas o que vai deixar de fazer hoje. Ele administra pendências. Caso você precise de algo, ele tem um bom coração: dedicará a você o tempo necessário - não mais, não menos - e depois riscará algo de sua lista de afazeres, antes de sair com pressa.
O escritor de microcontos não se considera um escritor. Ele é engenheiro, advogado, médico legista, gerente de uma mercearia. Ele tem uma vida cheia de coisas importantes e não liga para literatura. Sequer se lembra da última vez que teve tempo de abrir um livro. Se diz contente com as escolhas que fez, mas não consegue dormir à noite. As histórias lhe enchem a mente durante o dia, empatam seu raciocínio e povoam seus sonhos. E ele acorda ainda mais cansado do que quando foi dormir, cansado de viver intensamente 24 horas por dia. Acordado, vive sua vida conforme o plano; dormindo, vive todas as histórias confusas que não queria ter criado, mas que se recusam a ir embora.
O escritor de microcontos acorda já suado, se levanta e abre as janelas. Senta-se à mesa e escreve, um a um, todos os seus sonhos. Os pedacinhos de que se lembra de uns, a totalidade esquartejada de outros. São pedaços reduzidos e sintéticos. Ele sabe que as histórias estão dentro de cada um, e que basta uma pista para que as pessoas despertem para elas e vivam-nas por completo, cada uma ao seu modo. Ele escreve estas pistas em parte por crer na imaginação humana, em parte porque não consegue encaixar na sua agenda o tempo de escrever uma história inteira, em parte porque entende que as histórias estejam sempre inteiras e incompletas ao mesmo tempo e ele não gosta de dizer mais que o necessário. Mais que isso, o escritor de microcontos não concebe o esforço desnecessário. Ele viveu toda sua vida fazendo somente o que tinha de ser feito, comprimindo o tempo, espremendo os dias, otimizando os processos. O desperdício, principalmente de tempo, lhe soa como uma insensatez, um descabimento.
As horas vão passando e ele enche dez, onze, doze páginas de histórias que ocupam uma linha cada. Algumas precisam de mais palavras, outras de menos, mas todas levam apenas o número exato. Enquanto escreve, sua mente vai se esvaziando. Aquela angústia, aquele suor, aquele barulho, como um raio, passam por suas mãos e preenchem o papel. Não raro ele acorda no outro dia de um sono tranqüilo e reconfortante com o pescoço virado e a testa manchada de tinta de caneta. A cabeça sobre o papel e os contos terminados.
São dias bons e proveitosos, geralmente mais calmos que os demais. A mente está limpa, ele não confunde os afazeres, a agenda se articula como num jogo de tétris, cada coisa em seu lugar, cada peça em seu espaço. Nestes dias ele chega a se esquecer de sua identidade indesejada e secreta. O escritor de microcontos volta a ser somente um doutor em física nuclear, um neurocirurgião, um administrador de uma fazenda de avestruzes. Vive como planejou viver, até que as histórias voltem a consumir sua paz, seu juízo e seu tempo. Elas sempre voltam.
Mal sabe o escritor de microcontos quantos escritores de enciclopédia gostariam de ter sua capacidade de síntese. Talvez surgissem, então, microenciclopédias sobre cada tema do mundo. Elas teriam, todas, o formato de um pocket book, só que menorzinho. Cada homem poderia, outra vez, dominar todo o conhecimento existente, e a ignorância desapareceria da face da Terra. Talvez surgissem máximas explicando ciências inteiras. Talvez as ciências deixassem de ser ciências e se tornassem meros exercícios retóricos, repetidos pelos meninos do segundo grau para desenvolver a memória. E a única ciência estudada seria a da síntese geral das coisas, que poderia se chamar Sintetilogia.
Talvez nesse dia, o escritor de microcontos pudesse finalmente sentar-se e perceber que fez tudo o que queria num só dia, e que ainda lhe sobrava bastante tempo. Então ele se sentaria à mesa com toda a paciência, depois de ter almoçado longamente, lido o jornal e tomado um cafezinho. Talvez ele se pusesse, após alguns momentos contemplando um objeto qualquer, a escrever romances e histórias cheias de detalhes. Detalhes sem importância, que as pessoas poderiam muito bem intuir sozinhas, mas que eram os detalhes de um mundo que só existe em sua cabeça e que ninguém conhecia antes. Talvez não precisasse nem mesmo deixar de escrever microcontos.
Talvez.
O escritor de microcontos não se considera um escritor. Ele é engenheiro, advogado, médico legista, gerente de uma mercearia. Ele tem uma vida cheia de coisas importantes e não liga para literatura. Sequer se lembra da última vez que teve tempo de abrir um livro. Se diz contente com as escolhas que fez, mas não consegue dormir à noite. As histórias lhe enchem a mente durante o dia, empatam seu raciocínio e povoam seus sonhos. E ele acorda ainda mais cansado do que quando foi dormir, cansado de viver intensamente 24 horas por dia. Acordado, vive sua vida conforme o plano; dormindo, vive todas as histórias confusas que não queria ter criado, mas que se recusam a ir embora.
O escritor de microcontos acorda já suado, se levanta e abre as janelas. Senta-se à mesa e escreve, um a um, todos os seus sonhos. Os pedacinhos de que se lembra de uns, a totalidade esquartejada de outros. São pedaços reduzidos e sintéticos. Ele sabe que as histórias estão dentro de cada um, e que basta uma pista para que as pessoas despertem para elas e vivam-nas por completo, cada uma ao seu modo. Ele escreve estas pistas em parte por crer na imaginação humana, em parte porque não consegue encaixar na sua agenda o tempo de escrever uma história inteira, em parte porque entende que as histórias estejam sempre inteiras e incompletas ao mesmo tempo e ele não gosta de dizer mais que o necessário. Mais que isso, o escritor de microcontos não concebe o esforço desnecessário. Ele viveu toda sua vida fazendo somente o que tinha de ser feito, comprimindo o tempo, espremendo os dias, otimizando os processos. O desperdício, principalmente de tempo, lhe soa como uma insensatez, um descabimento.
As horas vão passando e ele enche dez, onze, doze páginas de histórias que ocupam uma linha cada. Algumas precisam de mais palavras, outras de menos, mas todas levam apenas o número exato. Enquanto escreve, sua mente vai se esvaziando. Aquela angústia, aquele suor, aquele barulho, como um raio, passam por suas mãos e preenchem o papel. Não raro ele acorda no outro dia de um sono tranqüilo e reconfortante com o pescoço virado e a testa manchada de tinta de caneta. A cabeça sobre o papel e os contos terminados.
São dias bons e proveitosos, geralmente mais calmos que os demais. A mente está limpa, ele não confunde os afazeres, a agenda se articula como num jogo de tétris, cada coisa em seu lugar, cada peça em seu espaço. Nestes dias ele chega a se esquecer de sua identidade indesejada e secreta. O escritor de microcontos volta a ser somente um doutor em física nuclear, um neurocirurgião, um administrador de uma fazenda de avestruzes. Vive como planejou viver, até que as histórias voltem a consumir sua paz, seu juízo e seu tempo. Elas sempre voltam.
Mal sabe o escritor de microcontos quantos escritores de enciclopédia gostariam de ter sua capacidade de síntese. Talvez surgissem, então, microenciclopédias sobre cada tema do mundo. Elas teriam, todas, o formato de um pocket book, só que menorzinho. Cada homem poderia, outra vez, dominar todo o conhecimento existente, e a ignorância desapareceria da face da Terra. Talvez surgissem máximas explicando ciências inteiras. Talvez as ciências deixassem de ser ciências e se tornassem meros exercícios retóricos, repetidos pelos meninos do segundo grau para desenvolver a memória. E a única ciência estudada seria a da síntese geral das coisas, que poderia se chamar Sintetilogia.
Talvez nesse dia, o escritor de microcontos pudesse finalmente sentar-se e perceber que fez tudo o que queria num só dia, e que ainda lhe sobrava bastante tempo. Então ele se sentaria à mesa com toda a paciência, depois de ter almoçado longamente, lido o jornal e tomado um cafezinho. Talvez ele se pusesse, após alguns momentos contemplando um objeto qualquer, a escrever romances e histórias cheias de detalhes. Detalhes sem importância, que as pessoas poderiam muito bem intuir sozinhas, mas que eram os detalhes de um mundo que só existe em sua cabeça e que ninguém conhecia antes. Talvez não precisasse nem mesmo deixar de escrever microcontos.
Talvez.
5 Comments:
Gostei, gostei muito =*
:) Que dia que vc vai lançar um livro mesmo?
No dia 29 de fevereiro de 2012. Na Saraiva nova do salvador shopping.
Não percam!!!
Ah, vai ser um livro de auto-ajuda chamado: O Mago Valdir. Ainda estou atras de um ghost writer que possa realizar a tarefa de forma convincente. Alguém se candidata?
meu favorito.
Sou viciada em micronarrativas!
As minhas publico aqui:
http://minicontosanamello.blogspot.com/
As dos outros publico na Revista Veredas, onde sou editora:
http://www.veredas.art.br
Estás convidado. Apareça!
Abraço da Ana Mello.
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