domingo, maio 20, 2007

O Escritor de Microcontos

O escritor de microcontos é um cara impaciente. Decidiu criar barba, pois não gosta de perder tempo. Esquece de cortar o cabelo em meio aos afazeres importantíssimos e volta e meia sai de casa sem se pentear por causa de um atraso imprevisto ou de um adiantamento de agenda. É um homem sóbrio e de maneiras apressadas, porém atencioso. Dedica sua extrema atenção ao minucioso planejamento de todas as suas tarefas. Está sempre decidindo, não o que pretende fazer, mas o que vai deixar de fazer hoje. Ele administra pendências. Caso você precise de algo, ele tem um bom coração: dedicará a você o tempo necessário - não mais, não menos - e depois riscará algo de sua lista de afazeres, antes de sair com pressa.

O escritor de microcontos não se considera um escritor. Ele é engenheiro, advogado, médico legista, gerente de uma mercearia. Ele tem uma vida cheia de coisas importantes e não liga para literatura. Sequer se lembra da última vez que teve tempo de abrir um livro. Se diz contente com as escolhas que fez, mas não consegue dormir à noite. As histórias lhe enchem a mente durante o dia, empatam seu raciocínio e povoam seus sonhos. E ele acorda ainda mais cansado do que quando foi dormir, cansado de viver intensamente 24 horas por dia. Acordado, vive sua vida conforme o plano; dormindo, vive todas as histórias confusas que não queria ter criado, mas que se recusam a ir embora.

O escritor de microcontos acorda já suado, se levanta e abre as janelas. Senta-se à mesa e escreve, um a um, todos os seus sonhos. Os pedacinhos de que se lembra de uns, a totalidade esquartejada de outros. São pedaços reduzidos e sintéticos. Ele sabe que as histórias estão dentro de cada um, e que basta uma pista para que as pessoas despertem para elas e vivam-nas por completo, cada uma ao seu modo. Ele escreve estas pistas em parte por crer na imaginação humana, em parte porque não consegue encaixar na sua agenda o tempo de escrever uma história inteira, em parte porque entende que as histórias estejam sempre inteiras e incompletas ao mesmo tempo e ele não gosta de dizer mais que o necessário. Mais que isso, o escritor de microcontos não concebe o esforço desnecessário. Ele viveu toda sua vida fazendo somente o que tinha de ser feito, comprimindo o tempo, espremendo os dias, otimizando os processos. O desperdício, principalmente de tempo, lhe soa como uma insensatez, um descabimento.

As horas vão passando e ele enche dez, onze, doze páginas de histórias que ocupam uma linha cada. Algumas precisam de mais palavras, outras de menos, mas todas levam apenas o número exato. Enquanto escreve, sua mente vai se esvaziando. Aquela angústia, aquele suor, aquele barulho, como um raio, passam por suas mãos e preenchem o papel. Não raro ele acorda no outro dia de um sono tranqüilo e reconfortante com o pescoço virado e a testa manchada de tinta de caneta. A cabeça sobre o papel e os contos terminados.

São dias bons e proveitosos, geralmente mais calmos que os demais. A mente está limpa, ele não confunde os afazeres, a agenda se articula como num jogo de tétris, cada coisa em seu lugar, cada peça em seu espaço. Nestes dias ele chega a se esquecer de sua identidade indesejada e secreta. O escritor de microcontos volta a ser somente um doutor em física nuclear, um neurocirurgião, um administrador de uma fazenda de avestruzes. Vive como planejou viver, até que as histórias voltem a consumir sua paz, seu juízo e seu tempo. Elas sempre voltam.

Mal sabe o escritor de microcontos quantos escritores de enciclopédia gostariam de ter sua capacidade de síntese. Talvez surgissem, então, microenciclopédias sobre cada tema do mundo. Elas teriam, todas, o formato de um pocket book, só que menorzinho. Cada homem poderia, outra vez, dominar todo o conhecimento existente, e a ignorância desapareceria da face da Terra. Talvez surgissem máximas explicando ciências inteiras. Talvez as ciências deixassem de ser ciências e se tornassem meros exercícios retóricos, repetidos pelos meninos do segundo grau para desenvolver a memória. E a única ciência estudada seria a da síntese geral das coisas, que poderia se chamar Sintetilogia.

Talvez nesse dia, o escritor de microcontos pudesse finalmente sentar-se e perceber que fez tudo o que queria num só dia, e que ainda lhe sobrava bastante tempo. Então ele se sentaria à mesa com toda a paciência, depois de ter almoçado longamente, lido o jornal e tomado um cafezinho. Talvez ele se pusesse, após alguns momentos contemplando um objeto qualquer, a escrever romances e histórias cheias de detalhes. Detalhes sem importância, que as pessoas poderiam muito bem intuir sozinhas, mas que eram os detalhes de um mundo que só existe em sua cabeça e que ninguém conhecia antes. Talvez não precisasse nem mesmo deixar de escrever microcontos.

Talvez.

5 Comments:

Blogger Camilla Costa said...

Gostei, gostei muito =*

12:31 PM  
Blogger Ludi said...

:) Que dia que vc vai lançar um livro mesmo?

5:18 PM  
Blogger Ivan Seixas said...

No dia 29 de fevereiro de 2012. Na Saraiva nova do salvador shopping.
Não percam!!!

Ah, vai ser um livro de auto-ajuda chamado: O Mago Valdir. Ainda estou atras de um ghost writer que possa realizar a tarefa de forma convincente. Alguém se candidata?

7:12 PM  
Blogger Thiago said...

meu favorito.

6:07 PM  
Blogger Ana Mello escritora said...

Sou viciada em micronarrativas!
As minhas publico aqui:
http://minicontosanamello.blogspot.com/
As dos outros publico na Revista Veredas, onde sou editora:
http://www.veredas.art.br
Estás convidado. Apareça!
Abraço da Ana Mello.

2:58 PM  

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