O Banco de Idéias
Parte I - Velhos Amigos
O sol entra no quarto sem pedir licença. Me diz que esqueci de fechar a cortina ontem à noite. Um pouco de preguiça me impede de levantar, mas o suor incomoda e eu não consigo mais dormir. Dane-se. A essa altura não volto a dormir de qualquer jeito. Limito-me a ficar enrolando, na cama, antes de acordar, deixando os pensamentos desordenados fluírem sem rumo certo, passeando pelos caminhos que me trouxeram até aqui. Faz, tudo, tanto tempo... São fatos que não merecem nota nem lembrança, talvez exame; com exceção de um deles: o que está relacionado ao banco de idéias.
Este objeto, que entrou na minha vida acidentalmente, num momento de baixa, é um dos muitos capazes de pôr à prova os limites da sugestão. Afinal existem coisas entre a realidade e a imaginação que ainda nenhum lingüista foi capaz de nomear, e que só a sugestão é capaz de esclarecer minimamente.
Estava numa das piores fases de minha vida. Uma separação sem grande importância me afetou mais do que devia, me jogou no fundo do poço. Talvez fosse o presságio da espiral de infortúnio que viria pela frente. Desempregado, tive de voltar à casa da minha mãe; para ajudar a pagar as contas, aceitei uma ocupação que afastou de uma só vez o fantasma do desemprego e o meu amor próprio. Não tinha dinheiro para nada, mas tomava todos os dias uma dose de Gim no Alvitre’s antes de ir para casa. Para me ajudar a dormir.
Foi numa dessas noites solitárias que me apareceu o Gonçalo, de terno branco e chapéu. Entrou no bar como se fosse um personagem de minissérie, saído de um outro tempo. Apressado, pediu uma dose de Campari e se sentou - por uma dessas coincidências que quase põem abaixo meu agnosticismo - do meu lado. Olhou em volta antes de dar o primeiro gole e me reconheceu de pronto.
Gonçalo havia sido meu colega nos primeiros semestres da faculdade. Nós costumávamos sair da aula e ir andando até a praia, onde conversávamos por longas horas. Enquanto durasse a garrafa de whisky. Eu não tenho grandes lembranças da faculdade, tinha poucos amigos, era introspectivo, chato. Gonçalo foi meu grande companheiro de turma até o dia em que largou o curso e sumiu no mundo. Ele dizia sempre que tinha nascido pra ser rico. Abandonou a carreira assim que percebeu que não chegaria a lugar nenhum. Tinha algum senso de planejamento, e com certeza um grande senso do que seria perda de tempo ou não. Eu era, ali, a prova viva.
Apareceu naquela noite, quase irreconhecível. Muito mais gordo, de bigode e paletó de linho. Dava a impressão de estar muito bem, apesar da agitação. Esta, porém, vinha desde os tempos da faculdade. Gonçalo era quase hiperativo, não ficava quieto, falava sem parar e tinha um estoque interminável de idéias esdrúxulas, apesar de algumas espantarem mais por pertinentes. Devo admitir que aquela noite não estava com o espírito pronto para reencontrar antigos amigos, menos ainda os que haviam dado certo. E ouvia o Gonçalo sem empolgação enquanto ele me contava tudo o que lhe sucedera desde que nos perdemos de vista.
Tinha passado por mais três faculdades, ido e voltado da Europa, aberto meia dúzia de empresas fantásticas e falido a maior parte delas. Agora era o feliz proprietário de uma promissora granja na cidadezinha de Espigão. Enquanto narrava seu sucesso, fazia varias alusões a um objeto a que chamava “o banco”. Em certo momento consegui interrompê-lo e perguntar que banco era esse de que tanto falava.
Parte II - Um Futuro Brilhante
Foi aí que tudo começou. O Gonçalo já tinha tomado três doses de Campari em menos de meia hora de conversa e, no momento em que lhe perguntei do banco, ele fez sinal para que o garçom nos trouxesse mais duas doses de cachaça. A sua, tomou de um só trago antes de começar a falar. Contou, então, que o banco havia mudado sua vida. Atribuiu a ele a fabulosa idéia de criar galinhas, idéia que não é para qualquer um, veja bem, ele mesmo com tantas idéias fabulosas não a teria tido, jamais, sem ajuda de tal banco. Pois que na época brigou com a família toda. Os parentes teriam tentado impedir que enterrasse seu dinheiro em tal loucura, mas de nada adiantou. Estava decidido. Foi para o interior e investiu tudo - o que tinha e o que não tinha - na granja.
E Voilá! Agora estou muito bem, o povo da cidade me chama coronel. Não posso me dizer rico, pois ainda tenho alguns empréstimos a pagar, de negócios anteriores, mas do jeito que as coisas andam, em breve terei o suficiente para comprar o Acre. E riu muito de sua própria piada. Um riso alto e rouco que terminava em tosse. Enquanto isso, eu contemplava o fundo do copo de cachaça refletido sobre o balcão.
- Foi a melhor idéia que já me ocorreu, parceiro. Mas e você? Me conte de sua vida.
A conversa chegava finalmente no ponto que mais me incomodava. Minha história estava cheia das grandes aspirações e de um futuro promissor que começou a se desfazer em frente aos meus olhos logo que terminei a faculdade. As contas não pagas testemunhavam contra o mito de minha grande capacidade, tão sustentado por minha mãe em outros tempos, e derrubado sem misericórdia pelo fracasso em que me encontrava. As grandes idéias, fabulosas e criativas, que eu tive em minha vida ficavam vermelhas de vergonha diante da simplicidade de uma criação de galinhas. A verdade é que não consegui arrumar motivos suficientes para me convencer a não ir atrás do tal banco de idéias, quando Gonçalo insistiu para que eu fosse.
O banco de idéias ficava numa cidadezinha chamada Espigão, a mesma da granja. A melhor forma de chegar lá era indo de carro até uma cidade próxima e pegando, de lá, um barco de carreira. Gonçalo tinha que ir resolver uns negócios naquele final de semana e me levou junto. No caminho me contou, entre outras coisas, a história do objeto.
E Voilá! Agora estou muito bem, o povo da cidade me chama coronel. Não posso me dizer rico, pois ainda tenho alguns empréstimos a pagar, de negócios anteriores, mas do jeito que as coisas andam, em breve terei o suficiente para comprar o Acre. E riu muito de sua própria piada. Um riso alto e rouco que terminava em tosse. Enquanto isso, eu contemplava o fundo do copo de cachaça refletido sobre o balcão.
- Foi a melhor idéia que já me ocorreu, parceiro. Mas e você? Me conte de sua vida.
A conversa chegava finalmente no ponto que mais me incomodava. Minha história estava cheia das grandes aspirações e de um futuro promissor que começou a se desfazer em frente aos meus olhos logo que terminei a faculdade. As contas não pagas testemunhavam contra o mito de minha grande capacidade, tão sustentado por minha mãe em outros tempos, e derrubado sem misericórdia pelo fracasso em que me encontrava. As grandes idéias, fabulosas e criativas, que eu tive em minha vida ficavam vermelhas de vergonha diante da simplicidade de uma criação de galinhas. A verdade é que não consegui arrumar motivos suficientes para me convencer a não ir atrás do tal banco de idéias, quando Gonçalo insistiu para que eu fosse.
O banco de idéias ficava numa cidadezinha chamada Espigão, a mesma da granja. A melhor forma de chegar lá era indo de carro até uma cidade próxima e pegando, de lá, um barco de carreira. Gonçalo tinha que ir resolver uns negócios naquele final de semana e me levou junto. No caminho me contou, entre outras coisas, a história do objeto.
Parte III - As Idéias Vêm de Fora
O banco de idéias teria chegado a Espigão no início do século passado, trazido por um marinheiro americano. Não se sabia muito sobre a vida do marinheiro, só que chegou e alugou um quarto na pensão da cidade, deixando-se ficar por ali até a morte. Não tinha outra distração além do poker, que ensinou aos outros aposentados da cidade. Jogavam embaixo de uma amendoeira, na praça central, apostando grãos de feijão seco. Contava histórias duvidosas sobre seus feitos na guerra civil e atribuía sua criatividade ao tal banco, que jamais havia abandonado. Morreu sem aviso prévio, certamente de velhice, enquanto esperava a dona da pensão para lhe fazer o pagamento do mês. Ela o encontrou já frio, no momento em que chegava da feira de sábado.
Como o marinheiro não tinha herdeiros, o banco passou a ser disputado por seus companheiros de poker e pela dona da pensão. A disputa causou um rebuliço tal na cidade que o prefeito teve de interferir, confiscando a peça, que passaria a fazer parte do tesouro municipal de Espigão.
O banco de idéias ganhou este apelido a partir das histórias do marinheiro. Além dos grandes feitos que levaram à vitória yankee na guerra de secessão, ele atribuía ao objeto a origem de inúmeros inventos da modernidade: A locomotiva a vapor, a luz elétrica, o ferro de solda, a cidade de Las Vegas... A tradição continuou entre os cidadãos de Espigão que lhe atribuíam outras idéias ilustres como a fibra ótica e o plano real. Seus idealizadores teriam feito uma rápida e inspiradora visita à cidade poucos dias antes da divulgação dos inventos, o que podia ser comprovado no livro de visitas do museu do tesouro municipal, onde se encontra o banco de idéias.
Eu escutava estas histórias e me perguntava em silêncio o que estava fazendo ali. O Gonçalo intercalava a história do banco com a narração de suas intenções de comprar um jatinho ou helicóptero que o levasse direto à granja, sem precisar desse negócio de barco, atraso de vida. Dizia volta e meia que não gostava de ter amigo pobre. Amigo pobre só serve para pedir favor. Por isso me trazia ali, porque não queria mais um lhe pedindo favores. E ria muito de suas próprias piadas, e acabava se engasgando e tossindo. Sem dúvida um grande coração, o Gonçalo. Eu me consolava pensando que sair um pouco da cidade haveria de me fazer bem, que o mar me ajudaria a recuperar a serenidade, e que a gente tem de fazer alguma arbitrariedade de vez em quando, para não morrer de depressão antes dos quarenta.
Espigão tinha uma igreja mal pintada com a frente virada para o rio. Atrás dela, uma rua pavimentada que cortava a cidade e terminava na rodovia estadual, interditada desde que qualquer um ali pudesse se lembrar. As ruas transversais eram de barro com umas casinhas todas iguais coladas umas nas outras. Algumas sem reboco, algumas de sapê. Por entre as poças d’água, brincavam crianças descalças e barrigudas. Um ou outro cachorro se espreguiçava na porta das casas. À medida que íamos passando as pessoas saiam na janela para olhar. No centro da cidade havia uma praça onde ficava a prefeitura – único prédio com a pintura em dia - e o museu do tesouro municipal. Nessa praça pude reconhecer a pensão onde o marinheiro americano dormia, e à frente uma amendoeira debaixo da qual velhos jogavam dominó em silêncio, com o tabuleiro sobre as pernas.
Tudo me pareceu muito pobre, muito silencioso e perdido.
O banco de idéias teria chegado a Espigão no início do século passado, trazido por um marinheiro americano. Não se sabia muito sobre a vida do marinheiro, só que chegou e alugou um quarto na pensão da cidade, deixando-se ficar por ali até a morte. Não tinha outra distração além do poker, que ensinou aos outros aposentados da cidade. Jogavam embaixo de uma amendoeira, na praça central, apostando grãos de feijão seco. Contava histórias duvidosas sobre seus feitos na guerra civil e atribuía sua criatividade ao tal banco, que jamais havia abandonado. Morreu sem aviso prévio, certamente de velhice, enquanto esperava a dona da pensão para lhe fazer o pagamento do mês. Ela o encontrou já frio, no momento em que chegava da feira de sábado.
Como o marinheiro não tinha herdeiros, o banco passou a ser disputado por seus companheiros de poker e pela dona da pensão. A disputa causou um rebuliço tal na cidade que o prefeito teve de interferir, confiscando a peça, que passaria a fazer parte do tesouro municipal de Espigão.
O banco de idéias ganhou este apelido a partir das histórias do marinheiro. Além dos grandes feitos que levaram à vitória yankee na guerra de secessão, ele atribuía ao objeto a origem de inúmeros inventos da modernidade: A locomotiva a vapor, a luz elétrica, o ferro de solda, a cidade de Las Vegas... A tradição continuou entre os cidadãos de Espigão que lhe atribuíam outras idéias ilustres como a fibra ótica e o plano real. Seus idealizadores teriam feito uma rápida e inspiradora visita à cidade poucos dias antes da divulgação dos inventos, o que podia ser comprovado no livro de visitas do museu do tesouro municipal, onde se encontra o banco de idéias.
Eu escutava estas histórias e me perguntava em silêncio o que estava fazendo ali. O Gonçalo intercalava a história do banco com a narração de suas intenções de comprar um jatinho ou helicóptero que o levasse direto à granja, sem precisar desse negócio de barco, atraso de vida. Dizia volta e meia que não gostava de ter amigo pobre. Amigo pobre só serve para pedir favor. Por isso me trazia ali, porque não queria mais um lhe pedindo favores. E ria muito de suas próprias piadas, e acabava se engasgando e tossindo. Sem dúvida um grande coração, o Gonçalo. Eu me consolava pensando que sair um pouco da cidade haveria de me fazer bem, que o mar me ajudaria a recuperar a serenidade, e que a gente tem de fazer alguma arbitrariedade de vez em quando, para não morrer de depressão antes dos quarenta.
Espigão tinha uma igreja mal pintada com a frente virada para o rio. Atrás dela, uma rua pavimentada que cortava a cidade e terminava na rodovia estadual, interditada desde que qualquer um ali pudesse se lembrar. As ruas transversais eram de barro com umas casinhas todas iguais coladas umas nas outras. Algumas sem reboco, algumas de sapê. Por entre as poças d’água, brincavam crianças descalças e barrigudas. Um ou outro cachorro se espreguiçava na porta das casas. À medida que íamos passando as pessoas saiam na janela para olhar. No centro da cidade havia uma praça onde ficava a prefeitura – único prédio com a pintura em dia - e o museu do tesouro municipal. Nessa praça pude reconhecer a pensão onde o marinheiro americano dormia, e à frente uma amendoeira debaixo da qual velhos jogavam dominó em silêncio, com o tabuleiro sobre as pernas.
Tudo me pareceu muito pobre, muito silencioso e perdido.
Parte IV - O Banco de Idéias
Em lugar algum reconhecia o Eldorado da criatividade em que o banco de idéias deveria ter transformado aquele lugarejo. Por que viviam todos nessa pobreza se tinham em mãos a ferramenta de sua transformação? O Gonçalo parecia não notar o meu desconforto e seguia falando de suas histórias e dando risadas altas que acabavam numa tosse seca e irritante. Me conduzia para o museu do tesouro, onde eu deveria sentar no banco e ficar ali durante o tempo que desejasse. Não precisava ter pressa, dizia, além do que ele tinha alguns assuntos a tratar na granja e voltaria pra me buscar no final da tarde. Então pegaríamos juntos o barco de volta. Mas até lá eu já seria um novo homem. Iria embora carregando o germe da mudança, o mais precioso dos bens, que é a idéia.
Eis que finalmente chegava ao maravilhoso banco de idéias, objeto de minha jornada. Era uma peça antiga, com o estofado de veludo vermelho desbotado como se tivesse tomado muito sol e a madeira escura pedindo uma demão de verniz. Apesar disso, era uma cadeira bonita, no estilo clássico. Via-se que em outros tempos teria sido bastante confortável. Antes de terem-lhe apodrecido as molas e o pano, antes de a madeira, ressecada, ter perdido a flexibilidade. Na parte de baixo, tinham lhe colocado uma urna de madeira barata que contrastava muito com a original. A urna era trancada por um cadeado e possuía uma fenda no alto por onde o dinheiro deveria entrar. Pensei que esse deveria ser o motivo de ser chamado “banco” de idéias, apesar de que já esperava uma taxa de manutenção para quem desejasse sentar. Mesmo assim, fiquei surpreso quando um rapaz veio me cobrar os R$ 87,40. Naquele momento, porém, já estava bambo de sono e paguei sem protestar.
Acontece que enquanto observava aquele objeto estranho, fui acometido por uma incrível vontade de me sentar, como se minhas pernas perdessem a força. Uma fadiga mental que chegava a me dar tontura e excedia em muito o natural cansaço da viagem. Senti uma vertigem, como se fosse desmaiar. A idéia de que não deveria ter pago aquele absurdo cortou minha mente por um segundo antes que eu adormecesse.
Caí em sono profundo. Sonhei a princípio que o Gonçalo começava a crescer e crescer e que engolia a cidade de Espigão e depois ficava vermelho e explodia. Sonhei que escrevia uma carta para a minha mãe pedindo ajuda e era censurado pelo Gonçalo que apontava para as idéias que caiam do céu. E elas caiam aos montes, todas escritas em pedacinhos de papel picotado cor de laranja. Eu tentava, em vão, segurar uma que fosse, mas elas escorriam por entre meus dedos e se amontoavam no chão antes de derreter e melar tudo. Sonhei mais uma dúzia de sandices que poderiam de fato ser interpretadas como grandes idéias que me fizessem rico, ou que simplesmente mudassem os rumos de minha vida. E quando acordei daquele torpor, na cama de minha casa, já tinha se passado tanto tempo que eu nem lembrava mais qual delas fora eleita. Nem se havia dado realmente certo. Ponderando a esse respeito, agora, acho que sim. Que no fim das contas não só o banco, mas cada pedra em que eu pisei naquela viagem e ao longo de minha vida toda contribuiu, de alguma forma, para que eu acordasse agora, com o sol na minha cara, sem poder mais dormir.
Em lugar algum reconhecia o Eldorado da criatividade em que o banco de idéias deveria ter transformado aquele lugarejo. Por que viviam todos nessa pobreza se tinham em mãos a ferramenta de sua transformação? O Gonçalo parecia não notar o meu desconforto e seguia falando de suas histórias e dando risadas altas que acabavam numa tosse seca e irritante. Me conduzia para o museu do tesouro, onde eu deveria sentar no banco e ficar ali durante o tempo que desejasse. Não precisava ter pressa, dizia, além do que ele tinha alguns assuntos a tratar na granja e voltaria pra me buscar no final da tarde. Então pegaríamos juntos o barco de volta. Mas até lá eu já seria um novo homem. Iria embora carregando o germe da mudança, o mais precioso dos bens, que é a idéia.
Eis que finalmente chegava ao maravilhoso banco de idéias, objeto de minha jornada. Era uma peça antiga, com o estofado de veludo vermelho desbotado como se tivesse tomado muito sol e a madeira escura pedindo uma demão de verniz. Apesar disso, era uma cadeira bonita, no estilo clássico. Via-se que em outros tempos teria sido bastante confortável. Antes de terem-lhe apodrecido as molas e o pano, antes de a madeira, ressecada, ter perdido a flexibilidade. Na parte de baixo, tinham lhe colocado uma urna de madeira barata que contrastava muito com a original. A urna era trancada por um cadeado e possuía uma fenda no alto por onde o dinheiro deveria entrar. Pensei que esse deveria ser o motivo de ser chamado “banco” de idéias, apesar de que já esperava uma taxa de manutenção para quem desejasse sentar. Mesmo assim, fiquei surpreso quando um rapaz veio me cobrar os R$ 87,40. Naquele momento, porém, já estava bambo de sono e paguei sem protestar.
Acontece que enquanto observava aquele objeto estranho, fui acometido por uma incrível vontade de me sentar, como se minhas pernas perdessem a força. Uma fadiga mental que chegava a me dar tontura e excedia em muito o natural cansaço da viagem. Senti uma vertigem, como se fosse desmaiar. A idéia de que não deveria ter pago aquele absurdo cortou minha mente por um segundo antes que eu adormecesse.
Caí em sono profundo. Sonhei a princípio que o Gonçalo começava a crescer e crescer e que engolia a cidade de Espigão e depois ficava vermelho e explodia. Sonhei que escrevia uma carta para a minha mãe pedindo ajuda e era censurado pelo Gonçalo que apontava para as idéias que caiam do céu. E elas caiam aos montes, todas escritas em pedacinhos de papel picotado cor de laranja. Eu tentava, em vão, segurar uma que fosse, mas elas escorriam por entre meus dedos e se amontoavam no chão antes de derreter e melar tudo. Sonhei mais uma dúzia de sandices que poderiam de fato ser interpretadas como grandes idéias que me fizessem rico, ou que simplesmente mudassem os rumos de minha vida. E quando acordei daquele torpor, na cama de minha casa, já tinha se passado tanto tempo que eu nem lembrava mais qual delas fora eleita. Nem se havia dado realmente certo. Ponderando a esse respeito, agora, acho que sim. Que no fim das contas não só o banco, mas cada pedra em que eu pisei naquela viagem e ao longo de minha vida toda contribuiu, de alguma forma, para que eu acordasse agora, com o sol na minha cara, sem poder mais dormir.
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