Um Passo - Texto completo
Na incerta estrada de nossas vidas, cada bifurcação é decisiva. Mas ainda que cada passo, cada tropeço, decida silenciosamente por onde seguimos e onde cairemos, existe aquele momento específico que mostra com toda clareza sua importância. É o momento que catalisa todos os outros e te joga numa direção completamente diferente, e ganhar ou perder depende exclusivamente do caminho que se escolhe.
Em minha vida, esse momento foi uma noite com cheiro de chuva. A meia-luz amarelada dos postes iluminava somente a fumaça que saia de cada bueiro e fazia um pouco de frio. A lua refletida nas poças d'água passava quase desapercebida. Não me lembro de onde estava vindo, mas sei que caminhava para casa. O passo sem pressa era de indiferença. Naquela época dava no mesmo aonde eu ia. Foi quando vi, de relance, o brilho de um objeto no meio da rua.
Voltei o olhar para ver se era uma moeda, mas pareceu muito maior. Seria um anel? Foi quando me dei conta que havia tirado a sorte grande. Chegando mais perto me deparei com um diamante enorme que brilhava no meio daquela rua escura, refletindo a luz da lua. Olhei para os dois lados a fim de ter certeza de que não havia mais ninguém por perto. Sabe-se lá que espécie de armadilha era essa? Um diamante daquele tamanho deveria valer uma fortuna.
Me abaixei para pegar a jóia, mas nesse momento ouvi passos muito fortes do outro lado da rua. Alguém corria a toda velocidade. Poderia se tratar de qualquer coisa: a essa hora da noite nunca se sabe o que esperar. Eu coloquei a jóia rapidamente em meu bolso e tentei sair caminhando naturalmente, mas logo percebi que era atrás de mim que estavam correndo.
Um homem com a cara pintada a pasta d'água, batom e peruca, usando um terno preto clássico e outro com um macacão estampado de losangos intercalados vermelhos e amarelos com babados nas pontas e os pés descalços, saltaram sobre mim com toda a força e me imobilizaram. Um terceiro se aproximou com mais calma. Trajava um terno roxo com uma camisa verde de babados e uma calça branca com listras azuis bem claras. No seu rosto os restos da maquiagem de palhaço criavam junto com o cabelo preto desgrenhando uma combinação ao mesmo tempo bizarra e assustadora. Deu um trago no charuto que trazia nas mãos e perguntou enquanto os outros me seguravam:
- Onde está a jóia?
Eu não respondi. Um dos palhaços me deu um golpe forte no estômago e nas costas, o chefe perguntou outra vez:
- Onde está a jóia?
Eu apertava a jóia em minha mão direita escondida dentro do bolso da calça. Não posso dizer que tivesse algo a perder, minha própria vida não me valia muito. Nessa época rondava bares e boates em busca das sobras de amizades e restos de cerveja das quais me nutria. Uma existência de folhetim que jamais imaginei poder se abater sobre mim, mas na espiral da vida acontece tudo muito rápido, e quando você percebe, o fundo do poço já está muitos metros acima de sua cabeça. Os momentos tinham uma consistência semelhante à dos sonhos, era como se eu estivesse num eterno torpor me arrastando sobre uma consciência apagada. E aquele diamante parecia ter despertado por alguns instantes meu eu adormecido. Onde haviam ido parar meus sonhos? Seria possível corrigir meus rumos e voltar ao que deveria ter sido? Tudo isso se materializava naquela jóia que eu apertava em minha mão direita, dentro do bolso da calça.
- Onde está a jóia?
Cada silêncio era um novo golpe. Eu não me lembro em que momento ele parou de perguntar, ou se fui eu quem parou de ouvir, mas sei que continuei a levar socos e pontapés até que caísse inconsciente: minha boca e minhas mãos fechadas como pedra.
***
Logo que me despertei, ainda de olhos fechados, procurei em meu bolso direito pela jóia. Nada. Abrindo os olhos percebi que estava em casa. Haviam desaparecido as marcas, as feridas e as manchas de sangue do meu corpo. Eu procurei em volta e não pude entender como havia chegado ali. O diamante não estava em lugar algum, eu continuava com a mesma roupa da noite anterior. Simplesmente não fazia sentido.
Durante aquele dia cheguei a duvidar de minha mente. Mas, se o sangue da noite anterior não era mais real, a dor das pancadas que levei se fazia presente como prova indubitável. Nada que diferisse muito, porém, da minha ressaca habitual diurna. Com o passar das horas cheguei quase a me esquecer do que se havia passado, afinal tudo estava de volta no seu lugar. Não seria este, de toda forma, o primeiro sonho a deixar suas marcas na manhã seguinte.
Um pouco antes das sete saí de casa para comer alguma coisa. Mas no caminho, assim que a lua despontou no céu, eu senti um volume no meu bolso. Não seria possível, mas era real: a jóia estava ali oura vez entre meus dedos, no mesmo lugar onde esteve no dia anterior quando eu desmaiei.
Eu não tive sequer o tempo de tentar entender, pois olhando em volta reconheci de imediato a sombra de um dos palhaços que surgia na esquina. Corri o máximo que pude, mas eles eram três, e se dividiam na perseguição me encurralando por entre os becos e as ruas estreitas do centro. Eu caí e eles me pegaram outra vez. Outra vez os restos de maquiagem, outra vez as cores berrantes, o charuto, a mesma pergunta insistente, os golpes e o desmaio. Outra vez me despertei sem marcas, sem jóia, sem passado e nem futuro em vista.
Desde então minha vida tem sido assim: De dia sonho com o diamante e à noite o tenho em minhas mãos. Todas as noites corro dos palhaços que querem tirá-lo de mim; algumas vezes eles me acham e me quebram braços e pernas; algumas vezes eu consigo me esconder e então faço o possível para me manter acordado e não perder a jóia mas acabo pegando no sono e tudo começa outra vez.
Eu sei que existe alguma ligação entre a consciência, o amanhecer e as realidades, mas ainda não consegui descobrir como usá-los a meu favor. Agora que já desperdicei a maior parte da vida nesse jogo de gato e rato, não posso mais desistir. Só o que preciso é de uma forma de conjugar os três elementos. Estou me equilibrando sobre coisas que não compreendo e sinto que minha vida está por um triz. Na bifurcação onde parei, estou a um passo de qualquer coisa.
Em minha vida, esse momento foi uma noite com cheiro de chuva. A meia-luz amarelada dos postes iluminava somente a fumaça que saia de cada bueiro e fazia um pouco de frio. A lua refletida nas poças d'água passava quase desapercebida. Não me lembro de onde estava vindo, mas sei que caminhava para casa. O passo sem pressa era de indiferença. Naquela época dava no mesmo aonde eu ia. Foi quando vi, de relance, o brilho de um objeto no meio da rua.
Voltei o olhar para ver se era uma moeda, mas pareceu muito maior. Seria um anel? Foi quando me dei conta que havia tirado a sorte grande. Chegando mais perto me deparei com um diamante enorme que brilhava no meio daquela rua escura, refletindo a luz da lua. Olhei para os dois lados a fim de ter certeza de que não havia mais ninguém por perto. Sabe-se lá que espécie de armadilha era essa? Um diamante daquele tamanho deveria valer uma fortuna.
Me abaixei para pegar a jóia, mas nesse momento ouvi passos muito fortes do outro lado da rua. Alguém corria a toda velocidade. Poderia se tratar de qualquer coisa: a essa hora da noite nunca se sabe o que esperar. Eu coloquei a jóia rapidamente em meu bolso e tentei sair caminhando naturalmente, mas logo percebi que era atrás de mim que estavam correndo.
Um homem com a cara pintada a pasta d'água, batom e peruca, usando um terno preto clássico e outro com um macacão estampado de losangos intercalados vermelhos e amarelos com babados nas pontas e os pés descalços, saltaram sobre mim com toda a força e me imobilizaram. Um terceiro se aproximou com mais calma. Trajava um terno roxo com uma camisa verde de babados e uma calça branca com listras azuis bem claras. No seu rosto os restos da maquiagem de palhaço criavam junto com o cabelo preto desgrenhando uma combinação ao mesmo tempo bizarra e assustadora. Deu um trago no charuto que trazia nas mãos e perguntou enquanto os outros me seguravam:
- Onde está a jóia?
Eu não respondi. Um dos palhaços me deu um golpe forte no estômago e nas costas, o chefe perguntou outra vez:
- Onde está a jóia?
Eu apertava a jóia em minha mão direita escondida dentro do bolso da calça. Não posso dizer que tivesse algo a perder, minha própria vida não me valia muito. Nessa época rondava bares e boates em busca das sobras de amizades e restos de cerveja das quais me nutria. Uma existência de folhetim que jamais imaginei poder se abater sobre mim, mas na espiral da vida acontece tudo muito rápido, e quando você percebe, o fundo do poço já está muitos metros acima de sua cabeça. Os momentos tinham uma consistência semelhante à dos sonhos, era como se eu estivesse num eterno torpor me arrastando sobre uma consciência apagada. E aquele diamante parecia ter despertado por alguns instantes meu eu adormecido. Onde haviam ido parar meus sonhos? Seria possível corrigir meus rumos e voltar ao que deveria ter sido? Tudo isso se materializava naquela jóia que eu apertava em minha mão direita, dentro do bolso da calça.
- Onde está a jóia?
Cada silêncio era um novo golpe. Eu não me lembro em que momento ele parou de perguntar, ou se fui eu quem parou de ouvir, mas sei que continuei a levar socos e pontapés até que caísse inconsciente: minha boca e minhas mãos fechadas como pedra.
***
Logo que me despertei, ainda de olhos fechados, procurei em meu bolso direito pela jóia. Nada. Abrindo os olhos percebi que estava em casa. Haviam desaparecido as marcas, as feridas e as manchas de sangue do meu corpo. Eu procurei em volta e não pude entender como havia chegado ali. O diamante não estava em lugar algum, eu continuava com a mesma roupa da noite anterior. Simplesmente não fazia sentido.
Durante aquele dia cheguei a duvidar de minha mente. Mas, se o sangue da noite anterior não era mais real, a dor das pancadas que levei se fazia presente como prova indubitável. Nada que diferisse muito, porém, da minha ressaca habitual diurna. Com o passar das horas cheguei quase a me esquecer do que se havia passado, afinal tudo estava de volta no seu lugar. Não seria este, de toda forma, o primeiro sonho a deixar suas marcas na manhã seguinte.
Um pouco antes das sete saí de casa para comer alguma coisa. Mas no caminho, assim que a lua despontou no céu, eu senti um volume no meu bolso. Não seria possível, mas era real: a jóia estava ali oura vez entre meus dedos, no mesmo lugar onde esteve no dia anterior quando eu desmaiei.
Eu não tive sequer o tempo de tentar entender, pois olhando em volta reconheci de imediato a sombra de um dos palhaços que surgia na esquina. Corri o máximo que pude, mas eles eram três, e se dividiam na perseguição me encurralando por entre os becos e as ruas estreitas do centro. Eu caí e eles me pegaram outra vez. Outra vez os restos de maquiagem, outra vez as cores berrantes, o charuto, a mesma pergunta insistente, os golpes e o desmaio. Outra vez me despertei sem marcas, sem jóia, sem passado e nem futuro em vista.
Desde então minha vida tem sido assim: De dia sonho com o diamante e à noite o tenho em minhas mãos. Todas as noites corro dos palhaços que querem tirá-lo de mim; algumas vezes eles me acham e me quebram braços e pernas; algumas vezes eu consigo me esconder e então faço o possível para me manter acordado e não perder a jóia mas acabo pegando no sono e tudo começa outra vez.
Eu sei que existe alguma ligação entre a consciência, o amanhecer e as realidades, mas ainda não consegui descobrir como usá-los a meu favor. Agora que já desperdicei a maior parte da vida nesse jogo de gato e rato, não posso mais desistir. Só o que preciso é de uma forma de conjugar os três elementos. Estou me equilibrando sobre coisas que não compreendo e sinto que minha vida está por um triz. Na bifurcação onde parei, estou a um passo de qualquer coisa.
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