Uma Casa Cheia de Eletrodomésticos
O primeiro erro de Estácio foi deixar a porta aberta. Não haveria mais nada quando voltasse pra casa. Se deu conta disso enquanto caminhava para o trabalho. Imaginou aqueles homens retirando um a um todos os seus eletrodomésticos, comprados com suor e sacrifício ao longo dos anos e um sentimento de perda invadiu sua alma. Ensaiou um retorno, mas achou que seria tarde demais. Não se podia brincar com essas coisas, era uma cidade perigosa.
Não teria mais para onde voltar e há muito não havia ninguém à sua espera. Logo percebeu que não havia também para onde ir. Passou pela entrada da rua onde trabalhava e decidiu seguir adiante. Se fosse para ser roubado outra vez nem adiantava trabalhar. Não seguiria sustentando os marginais pelo resto da vida. Trabalhando, obedecendo, se humilhando, gastando o tempo que poderia usar para realizar tudo o que sonhou... O que sonhou? Estácio mal se lembrava de seus sonhos.
Enquanto caminhava em linha reta por ruas das quais não mais se recordava, ele tentava se lembrar de algum de seus sonhos. Quando criança quis ter um videogame. Agitou as moedas no bolso e verificou com tristeza que não seriam suficientes para comprar um videogame, além do que, sua televisão estaria, a essa altura, sendo vendida na feira dos ratos. Lembrou-se também que queria ter tido um filho homem para colocar-lhe o nome de Estácio Neto, em homenagem ao seu pai, mas este sonho também não seria realizado agora, afinal que mulher teria um filho com um homem sem eletrodomésticos? E além de tudo, seu nome estava fora de moda.
O terceiro sonho de que se lembrou foi o de se tornar marinheiro. Estácio tinha pelo mar um misto de medo e fascínio. Achava que se fosse marinheiro falaria vários idiomas e conheceria mulheres de cabelos ruivos. Lutaria contra piratas e monstros, seria encantado por sereias e tesouros, viveria grandes aventuras e poderia fugir num cargueiro sem bandeira, rumo a lugar nenhum, no dia em que estivesse cansado disso tudo.
O segundo erro de Estácio foi entrar na água de roupa, tão logo o mar apareceu em sua frente. Interpretou o encontro como um sinal, ainda que a linha reta na qual caminhava lhe levasse inexoravelmente à orla da cidade. O sonho era ser marinheiro, mas um banho de mar estava de bom tamanho por agora.
Estácio não ia à praia. Estácio ia ao trabalho e voltava pra casa. Aos domingos Estácio via TV, jogava damas e comia pastel, mas nada disso ele fazia na praia. Estácio não conseguiu se lembrar porque, mas se lembrou que gostava de ir à praia quando era criança, com o pai.
Os sapatos ficaram pesados e a roupa cheia de bolhas de ar que lhe faziam cócegas. A água estava clara, o céu bonito. Na areia poucas pessoas tomavam sol ou passavam de um lado a outro. “Que dia bonito para começar a viver" Pensou. Mas isto não era uma propaganda de automóveis. E mesmo para se fazer parte de uma propaganda de automóveis era preciso ter dinheiro. Estácio não tinha nenhum, exceto algumas moedas cheias de areia no bolso da calça.
E lá foi Estácio, com a camisa de linho branco, encharcada e transparente, a calça preta grudando no corpo e os bolsos cheios de água, andando pela calçada sem saber ao certo aonde ia. A linha reta que lhe levara à praia ficara para trás. Agora, o sol quente em sua cabeça e o sal secando na roupa que pinicava seu corpo lhe induziam a um ziguezague nas proporções da sua confusão mental.
O terceiro erro de Estácio não pode ser atribuído diretamente a ele, mas trata-se de uma conseqüência dos outros dois, assim como os outros dois são conseqüência de todos os outros que ele havia cometido desde a época em que gostava de ir à praia com o pai. O sal, o sol, o incômodo, a sede, as roupas molhadas pinicando, a constatação de que seria necessário bem mais que um banho de mar para mandar tudo à merda e a desidratação fizeram com que ele caísse desmaiado no meio do calçadão.
Estácio acordou num posto de saúde perto de sua casa, nu sobre a cama. Estava coberto com um lençol, tinha uma forte dor de cabeça e um tubo de soro ligado ao seu braço. Teve de esperar para sair dali. Recebeu da enfermeira responsável uma extensa bronca da qual não pode distinguir as palavras, recomendações de repouso e o saco plástico onde estavam seus pertences: um bolo de roupas úmidas e cheias de areia. Aparentemente, quem lhe prestou assistência, cobrou pela ajuda, pois suas moedas não estavam mais no bolso.
Ainda atordoado e num gesto quase automático, Estácio andou para casa.Ao contrário do que esperava, encontrou a porta fechada. Se deu conta ainda de que a chave havia sumido junto com as moedas. Foi assim que, sem mais forças, nem nervos, nem saco, vencido pela dor de cabeça e pelo cansaço, Estácio se deitou no chão e dormiu um sono profundo. Estirado na frente de sua casa - fechada, intacta, cheia dos eletrodomésticos que ele havia comprado ao longo de tantos anos - foi, ao menos, poupado de ver aquele que lhe havia socorrido mais cedo no calçadão abrir a porta de sua casa para recolher o resto do pagamento pelo socorro prestado.
Não teria mais para onde voltar e há muito não havia ninguém à sua espera. Logo percebeu que não havia também para onde ir. Passou pela entrada da rua onde trabalhava e decidiu seguir adiante. Se fosse para ser roubado outra vez nem adiantava trabalhar. Não seguiria sustentando os marginais pelo resto da vida. Trabalhando, obedecendo, se humilhando, gastando o tempo que poderia usar para realizar tudo o que sonhou... O que sonhou? Estácio mal se lembrava de seus sonhos.
Enquanto caminhava em linha reta por ruas das quais não mais se recordava, ele tentava se lembrar de algum de seus sonhos. Quando criança quis ter um videogame. Agitou as moedas no bolso e verificou com tristeza que não seriam suficientes para comprar um videogame, além do que, sua televisão estaria, a essa altura, sendo vendida na feira dos ratos. Lembrou-se também que queria ter tido um filho homem para colocar-lhe o nome de Estácio Neto, em homenagem ao seu pai, mas este sonho também não seria realizado agora, afinal que mulher teria um filho com um homem sem eletrodomésticos? E além de tudo, seu nome estava fora de moda.
O terceiro sonho de que se lembrou foi o de se tornar marinheiro. Estácio tinha pelo mar um misto de medo e fascínio. Achava que se fosse marinheiro falaria vários idiomas e conheceria mulheres de cabelos ruivos. Lutaria contra piratas e monstros, seria encantado por sereias e tesouros, viveria grandes aventuras e poderia fugir num cargueiro sem bandeira, rumo a lugar nenhum, no dia em que estivesse cansado disso tudo.
O segundo erro de Estácio foi entrar na água de roupa, tão logo o mar apareceu em sua frente. Interpretou o encontro como um sinal, ainda que a linha reta na qual caminhava lhe levasse inexoravelmente à orla da cidade. O sonho era ser marinheiro, mas um banho de mar estava de bom tamanho por agora.
Estácio não ia à praia. Estácio ia ao trabalho e voltava pra casa. Aos domingos Estácio via TV, jogava damas e comia pastel, mas nada disso ele fazia na praia. Estácio não conseguiu se lembrar porque, mas se lembrou que gostava de ir à praia quando era criança, com o pai.
Os sapatos ficaram pesados e a roupa cheia de bolhas de ar que lhe faziam cócegas. A água estava clara, o céu bonito. Na areia poucas pessoas tomavam sol ou passavam de um lado a outro. “Que dia bonito para começar a viver" Pensou. Mas isto não era uma propaganda de automóveis. E mesmo para se fazer parte de uma propaganda de automóveis era preciso ter dinheiro. Estácio não tinha nenhum, exceto algumas moedas cheias de areia no bolso da calça.
E lá foi Estácio, com a camisa de linho branco, encharcada e transparente, a calça preta grudando no corpo e os bolsos cheios de água, andando pela calçada sem saber ao certo aonde ia. A linha reta que lhe levara à praia ficara para trás. Agora, o sol quente em sua cabeça e o sal secando na roupa que pinicava seu corpo lhe induziam a um ziguezague nas proporções da sua confusão mental.
O terceiro erro de Estácio não pode ser atribuído diretamente a ele, mas trata-se de uma conseqüência dos outros dois, assim como os outros dois são conseqüência de todos os outros que ele havia cometido desde a época em que gostava de ir à praia com o pai. O sal, o sol, o incômodo, a sede, as roupas molhadas pinicando, a constatação de que seria necessário bem mais que um banho de mar para mandar tudo à merda e a desidratação fizeram com que ele caísse desmaiado no meio do calçadão.
Estácio acordou num posto de saúde perto de sua casa, nu sobre a cama. Estava coberto com um lençol, tinha uma forte dor de cabeça e um tubo de soro ligado ao seu braço. Teve de esperar para sair dali. Recebeu da enfermeira responsável uma extensa bronca da qual não pode distinguir as palavras, recomendações de repouso e o saco plástico onde estavam seus pertences: um bolo de roupas úmidas e cheias de areia. Aparentemente, quem lhe prestou assistência, cobrou pela ajuda, pois suas moedas não estavam mais no bolso.
Ainda atordoado e num gesto quase automático, Estácio andou para casa.Ao contrário do que esperava, encontrou a porta fechada. Se deu conta ainda de que a chave havia sumido junto com as moedas. Foi assim que, sem mais forças, nem nervos, nem saco, vencido pela dor de cabeça e pelo cansaço, Estácio se deitou no chão e dormiu um sono profundo. Estirado na frente de sua casa - fechada, intacta, cheia dos eletrodomésticos que ele havia comprado ao longo de tantos anos - foi, ao menos, poupado de ver aquele que lhe havia socorrido mais cedo no calçadão abrir a porta de sua casa para recolher o resto do pagamento pelo socorro prestado.
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