Flávio Arturo Torquetto tinha 32 anos de idade, um emprego estável, uma namorada bonita e um problema imaginário. Ainda se sentia bem jovem, embora os sinais de que o tempo estava passando aparecessem com alguma frequência, agora. A falta de ânimo para ficar acordado até tarde, as ressacas homéricas, a apreciação do silêncio e da quietude... Seu aniversário havia sido muito bem comemorado com um jantar caro, a visita dos seus pais e alguns bons presentes. Flávio decidiu comer peixe naquela noite, o que não era habitual. Preferia carne, mas ultimamente andava preocupado com o peso. Não tinha mais vinte e poucos anos.
Havia ingressado no serviço público na busca de estabilidade e de sossego. Encontrou. O salário pagava um bom apartamento, afastado do centro, onde ele acordava com o canto dos passarinhos e cheiro de mato molhado, mesmo estando há apenas três minutos de um supermercado e dez de um shopping center. Namorava uma menina recém-formada, cuja ocupação era estudar para concursos. Ela o admirava bastante. Tão sério, responsável, inteligente. Passou sem estudar, suspirava. A sorte não dá conta dessas coisas. Tinha tudo para se considerar um homem realizado e feliz, aproveitando os últimos suspiros de uma vida boêmia, de uns poucos excessos, de um salário de gente grande, ainda sem o peso de uma família para sustentar. Ia criando juízo aos poucos, se orgulhava sua mãe.
Mas ultimamente vinha se sentindo mal e não conseguia entender o porquê. Uma coceira misteriosa na gengiva, como se fosse um dente que quisesse sair. Mas aos 32 anos? Não seria possível. Tinha esperado que todos os 32 dentes saíssem para extrair, de uma só vez, os quatro sobressalentes, e isso fazia mais de 10 anos!
Alguns dias, quando dormia sozinho, acordava sobressaltado. O dente imaginário doía como se perfurasse a gengiva, que coçava e coçava muito e o único alívio possível era morder o que quer que encontrasse pela casa, desde os lápis e as canetas ao cabo da escova, dos talheres e até o lombo livros menores. Flávio, numa noite de quase desespero, Procurou na internet e encontrou um aplicativo para o celular que seria capaz de tirar radiografias. Custou USD 7.99. Na foto, borrada e escura, uma mancha branca foi o suficiente para confirmar as suspeitas. Era um dente novo, saído, sabe deus de que inferno. Seria ele um elo perdido na evolução humana, uma espécie de Chimpanzé superinteligente? Ou melhor, estaria ele um passo atrás dos outros homens, involuindo ao invés de evoluir, rumo a um estado pré homo sapiens? Justo ele que era tão moderno, tão inteligente, tão civilizado e bem sucedido?
Foi ao dentista. Este riu incrédulo da situação relatada, tentou dissuadir Flávio da ideia de que houvesse um dente fantasma nascendo em sua boca, maldisse os irresponsáveis que vendem esse tipo de porcaria para celular - No meu tempo, telefone era para fazer ligação! -, mas acabou, relutantemente, cedendo em prescrever uma radiografia da arcada dentária. Dessa vez uma de verdade.
A namorada de Flávio era uma menina doce e gentil e fez questão de acompanhá-lo no exame. Afinal de contas, não era como se estivesse realmente ocupada com outra coisa que não Flávio. Para sua infelicidade, não pode entrar com ele na sala do raio-x, e ficou realmente alarmada quando lhe explicaram que a exposição a esses raios causava câncer.
Durante aquela semana, Flávio dormiu com ela somente duas vezes, e teve que tomar remédio para conseguir pegar no sono. Nas outras noites, foi à varanda e ficou fumando cigarros enquanto tentava organizar as ideias. Não queria que sua namorada soubesse que estava fumando. Aliás, não estava. Estava apenas muito preocupado e precisava pensar.
A radiografia não apontou nada, o que ao invés de melhorar, piorou o humor de Flávio. Sua namorada não entendia, e começava a perder a paciência com ele, sempre com o cenho franzido, sempre aéreo e mal humorado. Flávio a evitava. Estava tendo problemas para dormir e preferia ficar acordado sozinho, fumando, que tomando remédios e fingindo que estava tudo bem. A menina detestava fumaça de cigarros, detestava ver Flávio preocupado, aliás, detestava tudo o que saísse do padrão de felicidade e sossego que eles haviam elaborado, cada um ao seu jeito.
Flávio não era mais o mesmo. Passou a se atrasar para o trabalho, se apresentar com a barba mal feita, a gravata torta. Nem bem sentava na mesa, já se levantava e ia buscar café. Acabou que, sem que ninguém conseguisse evitar, o bule foi parar na sua sala. Seria possível que houvesse um dente invisível crescendo dentro de sua cabeça? Seria um nervo louco que continuava sentindo o dente arrancado 10 anos antes? Mas por que só agora? A concentração diminuía, e como ocorre no serviço público, Flávio foi punido simbolicamente, passando a receber cada vez menores quantidades de trabalho.
Seu relacionamento também foi para o buraco. Na realidade, ele nem gostava muito mesmo daquela menina abestalhada que tinha medo de raio-x, e cujo ideal de felicidade era morar junto com um cara que aceitasse dividir as tarefas domésticas. Hoje eu cozinho e você lava os pratos, amanhã é a minha vez, cada semana um dos dois tira o lixo e assim vamos viver harmoniosaaaaaaaaaaaaarrrgh! Não quero mais te ver, desculpa. Não é você, sou eu. Estou passando por uma fase difícil. Não, não é um clichê, é um arquétipo, algo que é inerente a todas as relações humanas, desde os tempos das cavernas até... Não, desculpa, não estou falando difícil para mudar o foco da discussão, aliás, quer saber? É você sim. ODEIO LAVAR PRATO, ODEIO FAZER A CAMA. Não, desculpa. Estou passando por uma fase difícil, é sério. Te ligo, não se preocupa. Até que enfim ela saiu daqui. Acende um cigarro, paga a conta. Não pode fumar, aqui senhor, é lugar fechado. PUTA QUE O PARIU! Isso aqui em cima é uma porra de um toldo e... Aliás, quer saber, me passa a maquininha pra cá e se quiser chama a polícia, falou? Eu mesmo digito, essa bosta!
Vai andando para casa. Tem whisky em casa. Whisky e um alicate. O caminho é longo e as ideias vão se acumulando. O whisky desce rápido; o alicate, não tão rápido. A cabeça roda, o mundo gira, a luz apaga.
No dia seguinte Flavio acorda no hospital, sem saber nem bem ao certo como foi parar ali. A boca está tão inchada que é como se fosse uma outra cabeça brotano da sua. Tem sangue para todo lado, na camisa, no lençol. Na cabeceira de sua maca, além de um frasco de iodo, água oxigenada, alcóol e uma porção de instrumentos de tortura medieval, tem um dentinho em miniatura. Daqueles que parecem dente de leite, mas com uma raiz bem, longa, de uma ponta só, que no final, cresce como se fosse um rabo de arraia. Ou a cauda do demônio, pensa.
Tem algo de marinho nos dentes, pensa flávio, antes de apagar outra vez. É como se fossem criaturas marinhas fossilizadas, quem sabe uma água-viva paleolítica, quem sabe um coral, Eles crescem em nossas bocas. São organismos independentes de nós.... que se alimentam da nossa energia, do nosso sangue. E tem sangue para todo lado.