sexta-feira, novembro 30, 2007

Gilberto e sua morte anunciada

Horas antes de morrer, Gilberto recebeu uma carta. Estava escrita do seu próprio punho, assinada por ele mesmo e postada numa agencia de Alexandria, cidade na qual ele havia passado a infância. Na carta estavam descritos os acontecimentos desta tarde que desencadeariam inevitavelmente a sua morte. Sem muita surpresa, o funcionário público aposentado tirou seus óculos de leitura e com um suspiro dobrou o envelope e guardou-o no bolso da camisa.

Com passos resolutos, foi se dirigindo à porta, mas deteve-se por um instante ao ver sua esposa sentada em frente à televisão. Ela assistia um daqueles aborrecidos programas matinais enquanto tricotava uma meia de lã. Gilberto não quis perturbá-la, mas neste momento um nó em seu peito obrigou-o a um gesto demasiado afetuoso, que poderia ter denunciado toda a situação que ele se empenhava em esconder. Precipitou-se sobre sua esposa e lhe deu um carinhoso beijo na testa. Ela lhe pôs as mãos sobre as suas e soltou um leve suspiro, mas não disse uma palavra. Ele seguiu para a porta e saiu. Pretendia enfrentar sozinho a passagem.

O parque estava cheio. O domingo se anunciava como num desses filmes românticos do cinema americano. Famílias, crianças, cachorros, todos brincando alegremente, correndo de um lado para o outro, vivendo suas vidas de domingo. Gilberto tratou de escolher um local mais afastado, um banco em frente ao lago, de onde pudesse ficar olhando os pedalinhos, e lá se deixou ficar, esperando que os acontecimentos... enfim. Esperando que os acontecimentos acontecessem.

A manhã, porém, foi passando sem que se passasse nada de anormal e, após uma hora de espera, Gilberto começou a desconfiar de tudo. Estranhou, primeiro, a sua própria calma em tal momento, desconfiou em seguida do conteúdo da carta que examinou longamente em busca de um escorregão de caligrafia. Duvidou daquela manhã idílica e chegou à derradeira conclusão de que este parque nem sequer estava na mesma cidade que ele, já que morava em Montevidéu e este era o parque onde brincava quando criança, no Egito. Uma ponta de pavor passou por seu rosto, como numa tentativa de retomar o controle da situação, mas logo foi embora. Os pensamentos se confundiam e sua consciência turva ia e vinha como quem nada em gelatina. Uma criança veio correndo ao seu encontro.

Gilberto já estava quase adormecido, metido em uma realidade embaçada por sentidos que iam sumindo junto com a consciência. Ele, porém, reconheceu-se calmamente neste espelho do tempo. Tinha apenas 7 anos, abriu os bolsos do ancião desconhecido e tirou-lhe a carta que ali se encontrava e saiu correndo de volta.

Seguiram-se momentos confusos onde Gilberto, que se lembrava bem daquela tarde reviveu-a de perspectivas diferentes, como se sua alma estivesse a se multiplicar. Seria este o segredo da morte? A fusão do tempo, que passa a ser percebido em toda a sua plenitude de dimensão comum, com todos os momentos da vida? Passados e futuros podem ser vividos caso se logre alcançá-los?

Acompanhou a si mesmo menino, encaminhando-se ao correio, postando uma carta desconhecida num envelope desconhecido. De onde vinha a consciência? De onde vinham os atos? O sono, a tarde idílica, o sol e o quarto que deixara após ler a carta, onde também se encontrava, deitado na cama, solitário, tendo convulsões: tudo veio à tona uma última vez, junto com as lembranças de sua esposa morta há mais de 20 anos e uma súbita esperança do reencontro.

-Eram tantos reencontros...

terça-feira, novembro 06, 2007

Fotoconto III - De onde veio a fé

A fé veio de uma concha no fundo do mar. Surgiu uma molécula, depois juntou com outra, e depois outra e outra, até que formou uma bolhinha que a concha soltou ao respirar. Essa bolha foi subindo e subindo até que saiu d’água. Mas ela não se misturou com o ar, ao invés disso, se fez de espuma e pegou carona na crista de uma onda que vagava.

A fé não sabia bem quem ia acertar, mas logo que rebentou contra os recifes, perto da praia, viu que ia ser fácil. Ela foi direto no coração da menina, e fez dela sua conchinha, juntando uma molécula de cada vez, crescendo a cada dia. A menina nem sentiu, mas, quando pensou que não, já estava ali, na porta da igreja, rezando junto com tantas outras meninas crescidas com aquela fé que não sabiam de onde vinha.

Fotografia: Ricardo Borges

quinta-feira, novembro 01, 2007

Microconto XXVII - Aprendendo a lidar com frações

Da alma que partiu, só voltou a metade. Mas esta veio com mulher e filhos.