terça-feira, novembro 30, 2010

O Mapa de Memórias

Duas partículas dançavam em volta de si mesmas. A leveza de seus movimentos e o brilho pálido na escuridão nos levariam a inferir que fossem partículas da alma. Como sabemos, a alma é formada de partículas espalhadas pelo corpo humano. Elas se movem livremente em meio às outras, mas, ao contrário destas, não se unem para formar células, tecidos ou órgãos. Elas vão e vêm, em movimentos suaves, percorrendo o corpo e coletando informações que são gravadas em sua estrutura, como deformações em seus tamanhos e pesos. Um homem adulto pode chegar a ter 5 bilhões de partículas em sua alma: um número insignificante se comparado com qualquer outro elemento encontrado no corpo humano.

De qualquer maneira, essas duas partículas estavam dançando em volta de si mesmas. A sutileza de seus movimentos e o brilho escasso, em meio à escuridão, nos levariam a crer que eram partículas da alma. Mas não eram. Quando o corpo morre, a alma se dispersa quase imediatamente. Mas, por um momento que leva não mais que uma fração de segundos, todas as partículas da alma - repentinamente livres de sua função e, de algum modo, cientes de terem desempenhado um papel inútil ao longo de toda uma vida -, se juntam para formar um mapa de lembranças. O corpo moribundo as recebe como uma memória condensada e completa de toda a sua existência terrena, um relato que engloba tanto o que os sentidos perceberam, quanto o que o coração e outros órgãos mais sutis sentiram em cada momento vivido. Os poucos que viveram para contar a experiência da morte - ou quase morte, nesses casos - descrevem essa memória condensada como um filme, embora a riqueza de detalhes e de sensações seja irreproduzível, dadas as limitações tecnológicas do audiovisual contemporâneo.

Mas, voltando ao nosso relato, havia duas partículas dançando no escuro. Seus movimentos suaves e seu brilho lúgubre poderia nos levar a acreditar que fossem partículas pertencentes a uma alma humana. E eram, de certa forma. Mas não exatamente. Após se reunirem uma última vez como partes da alma, atraídas pelo derradeiro suspiro de vida que abandona o corpo, e após formarem o conglomerado de memórias organizadas em seqüência impecavelmente lógica que presenteia o corpo moribundo com o “filme da sua vida”, pode acontecer algo raro. Em pouquíssimos casos - não há registros confiáveis de que o ocorrido ocorra mais de uma vez por década -, pode haver uma mutação nas partículas da alma. No momento em que, pela primeira e única vez, trabalham em conjunto, e não separadamente, as partículas, ao invés de se dispersarem, ficam presas umas às outras e passam a agir como um único corpo etéreo. O corpo morre, a alma não se esvai, como seria natural, e algo, que não seria correto chamar de alma, é deixado "vivo". Um espectro de partículas difusas cheio de memórias, anseios e propósitos de uma vida que não existe mais: a esse curioso fenômeno costuma-se chamar de fantasma.

Enfim, as duas partículas dançavam uma junto à outra. Seus movimentos pálidos e seu brilho tímido poderiam ter nos levado à inferência de que se tratasse de partículas da alma. Mas não. Elas se moviam demasiado próximas uma da outra e seu comportamento sincrônico e programado não era o de partículas da alma. Os outros bilhões de partículas que se moviam com a mesma cadência, com o mesmo propósito, condensadas num corpo rarefeito, brilhavam o brilho pálido que dava ao todo uma aparência que, por falta de adjetivos, chamarei de fantasmagórica. Todas juntas, se moviam obstinadamente enquanto o fantasma caminhava sobre a terra, atravessava portas e edifícios, assustando crianças enquanto seguia em frente sem propósito claro, revelando ao mundo, junto com as memórias de uma vida comum, muitos dos segredos da insólita biologia transcendental.