sexta-feira, junho 29, 2007

Microconto XII - Da Pertinência

Realizado seu sonho, Aristide não voltou a dormir.

domingo, junho 24, 2007

O Inimigo

Amanheceu e o sol me levantou aos beliscões. Cuspi areia com sangue, tomei um gole de água do cantil, precisei de todas as forças para me reerguer. Acordei com a firme determinação de encontrar o autor daquele golpe. O sol cozinhava meus delírios e fervia meu desejo de vingança. Não pude encontrá-lo nas nuvens, nem no horizonte e nem sequer em minha memória adormecida. Ao meu redor somente o deserto.

Me deixei vencer pelo cansaço. Abandonei meu corpo ao chão, encolhi a cabeça no meio das pernas e chorei. Primeiro foram lágrimas de ódio, depois vieram as lágrimas de desespero, em seguida as de sede e calor. Foram lágrimas suficientes para molhar a areia e fazer brotar dela um imenso rio por onde passaram baleias e navios, piratas e exercitos. Passavam ora caminhando na flor d'água, ora submersos, mas visíveis. As lágrimas permeiam a vida assim como o ar e o rio não lhes oferecia resistência. Passaram barcos de pesca e cortes de reinos distantes e, em meio a eles, passou correndo o meu cavalo. Eu tentei alcançá-lo mas não pude. A areia me atrasava o passo e ele se foi. Voltou pouco depois em meio a uma legião que partia para a guerra, mas dessa vez me carregava na garupa. Eu ia com a face torcida de ódio e nem vi quando fui derrubado.

Me encontrei desacordado no chão durante horas até perceber que meu inimigo não tinha rosto, muito menos havia ele disputado comigo alguma batalha esquecida. Engoli o sangue, a areia e o orgulho e peguei no sono outra vez. À noite é mais fácil caminhar. Além do quê, me guiam as estrelas.

quinta-feira, junho 21, 2007

Microconto XI - O Fio da Meada

Na encruzilhada, virou à esquerda. Jamais seria o mesmo.

domingo, junho 17, 2007

Eu e a Moça

A moça da chuva é temperamental e só faz o que quer. Eu já tentei argumentar, discutir, provar por a mais bê que aqui não deve chover nessa época do ano e sim naquela outra, e que tem lugares que precisam dessa chuva agora e não depois de amanhã. Mas ela não dá a mínima pra geografia, não me ouve e nem ouve ninguém. E quando a gente briga, sempre chove. E sair de casa se torna uma tarefa insuportável.

Hoje foi um pouco diferente. Choveu como sempre, mas eu não saí de casa. Amanheci muito doente. Quando o despertador tocou, eu já sabia que não iria me levantar e aquele barulhinho chato me convidava cada vez mais pra dentro. Esperei que ele parasse de tocar e puxei as cobertas até a altura do nariz. Estava completa a minha doença. No quentinho da minha cama, fazendo somente o que eu queria.

Talvez a moça da chuva tivesse razão em certo ponto. Afinal, ela estava quase sempre bem e eu estava quase sempre mal. Eu tinha meus pés demasiado fincados na terra, ela tinha os olhos sempre voltados para as nuvens. Eu estava eternamente preso à minha condição, ela tinha a displiscência de ser um fenômeno natural: inconsequente, alheia, saltitante, sem obrigações nem culpas.

Deitado na cama, se passaram dois dias. Ninguém conseguia entender o que eu tinha, e eu me recusava a ir ao médico. Essa chuva que não passa, dizia forçando uma tosse. A moça da chuva deve ter cansado de birra e deixou o sol sair. Foi quando eu fiquei bom e saí de casa. Fiz as pazes com ela e disse que a compreendia, agora. Lhe pedi que chovesse pra que pudessemos saltar as poças d'água e tomar banho de chuva. Os meteorologistas não entendiam, se perdiam em suas observações e cálculos. Houve desabamentos, catástrofes, alagamentos. Era como se o mundo estivesse mesmo desabando. Mas naquele momento eu era natural e não me preocupava mais com isso.

Acontece que eu não era a chuva, era somente amigo dela. E como acontece sempre aos amigos da chuva, eu fiquei gripado. Agora de verdade.

quinta-feira, junho 14, 2007

Microconto X - Eles dois

"Se for embora, não volte mais!" chorando, ela gritava.
Ele já não ouvia, e por isso sempre voltava.

segunda-feira, junho 11, 2007

O Dançarino Descalço

Conheci Monton enquanto passava um final de semana na praia, há quase uma década. Estávamos na casa de um amigo comum, o Anúlfo, porém nunca havíamos sido apresentados. Lembro de ter-me parecido um rapaz reservado, porém interessante, com notáveis pontos de vista sobre o que quer que se discutisse à sua volta. Ele possuía certa inquietação em pôr as coisas à prova, e sua argumentação entrava sempre por ângulos que ninguém havia pensado antes. Um minimalista, talvez, mas a partir do mínimo, fazia ruir o máximo.

Não nos conhecíamos bem, por isso também não trocávamos mais que algumas palavras. Eu sabia dele apenas o pouco que pegava em conversas cortadas ao meio e o que me haviam contado a seu respeito: que era formado em matemática pura, pós-graduado em história das ciências naturais e que metia o seu bedelho em quase todas as áreas de conhecimento; lia até bula de remédio. Estaria em eterno conflito com o meio acadêmico, justamente por questionar o que ele chamava de "os dogmas da ciência", as bases sobre as quais repousa o conhecimento ocidental e que estariam a tal ponto arraigadas em nossa forma de pensar que já não poderiam mais ser revistas e nem postas à prova. Monton não confiava no discernimento dos acadêmicos e tinha certa ambição megalomaníaca de rever absolutamente tudo.

Lembro-me de uma tarde em que, voltando da praia, peguei pelo meio uma discussão que ele travava na varanda com o Anúlfo. Estavam os dois sem camisa, de chinelos e bermuda, sentados confortavelmente em cadeiras de praia sobre a grama. Monton falava a Anúlfo a respeito dos números, dizia que o que teria de ser revisto não seria a sua organização decimal, mas a exatidão do seu sistema de unidades de grandeza. "Por que contamos 1, 2, 3, 4? De onde vieram estas grandezas, por que ninguém contesta sua exatidão? Qualquer estudioso de matemática percebe facilmente que o que define a natureza são números de outra ordem!" Dizia. Anúlfo retrucava com os argumentos óbvios de que estas eram as grandezas mensuráveis, que eram as que podíamos contar nos dedos, etc. Eu tenho um dedo, dois dedos, eu chuto três pedras, na minha família somos quatro pessoas, exemplificava.

Eu não entendia a fundo os números, mas posso dizer que apesar de concordar em princípio com Anúlfo, os argumento de Monton eram muito mais interessantes. Ele falava em Pi, falava em números neperianos e em outros nomes que a minha memória não foi capaz de guardar. Para ele os números naturais, as grandezas básicas a serem expressas em um único algarismo, seriam números tais como 2,718; 3,141516; etc. Números que resolvem equações trigonométricas e constam da maior parte das fórmulas e gráficos e Anúlfo, enquanto engenheiro, não poderia discordar. Dizia ainda que as grandezas mensuráveis só eram exatas porque alguém um dia disse isso e todo o mundo aceitou como certo, mas um dedo não é igual ao outro, assim como uma pedra não tem o mesmo tamanho nem a mesma forma e nem um membro da família equivale em valor ao outro.

Eram coisas que me faziam pensar. E eu ficava escutando; colocava minha cadeira de junto, pegava uma cerveja no freezer e me deleitava com a implosão do mundo inteiro a partir de seus argumentos. Naquela época estava ainda numa fase caótica da vida, onde nada estava definido e eu acho que gostava disso. Havia largado a universidade pra estudar música e era visto em casa como a ovelha negra da família. Mas o que me levou a escrever sobre Monton após tanto tempo não foram meus problemas familiares, há muito superados, tampouco somente a vontade de aludir a uma personalidade marcante, mas sim o conteúdo interessantíssimo da nossa única conversa.

Certa noite estava na varanda sozinho. Tinha tomado meu banho depois da praia e estava sentado tocando gaita enrolado num cobertor, enquanto os outros se distraiam com jogos de baralho. É necessário acrescentar que naquela época eu ainda estava me iniciando no estudo da gaita. Monton apareceu com uma cerveja na mão e se sentou por perto. Um pouco envergonhado, tratei de lhe explicar que ainda não conseguia separar os sons da gaita e tudo o que conseguia fazer com ela eram aqueles sons de notas tocadas ao acaso. Ele me respondeu com uma pergunta: “O que é a música, senão um monte de notas emitidas ao acaso?” Eu lhe respondi que se tratava ao menos de um acaso ordenado. “Segundo obra de outro acaso”, respondeu, e começou a me contar do projeto no qual estava envolvido naquela época.

Monton estava de partida para a Hungria, onde teriam sido descobertos documentos capazes de provar que toda a noção de harmonia da musica ocidental não passava de uma criação do acaso, e nada teria de exato ou mesmo real. Segundo o que ele dizia, a famosa peça para cravo “Der Barfusstänzer” do compositor húngaro Milo Varnhagen, datada do ano de 1522 e considerada pelos acadêmicos como o marco inicial da música ocidental, não teria sido escrita por Varnhagen, mas por um de seus sobrinhos em idade de 2 a 5 anos. Não passando de um monte de rabiscos feitos sem intenção.

Aos não entendidos de música, para compreender a gravidade da acusação de Monton, é necessário esclarecer que desta peça foram retirados os fundamentos teóricos e estilísticos da música como a conhecemos hoje, e toda a estética posterior foi baseada no primor de suas frases e escalas. Alguns estudiosos mais exaltados chegam a afirmar que nada foi feito na música ocidental desde o século XVI, a não ser uma constante releitura de “Der Barfusstänzer”.

A tese de Monton se baseava na análise de documentos valiosíssimos encontrados na Hungria após a queda da cortina de ferro. São arquivos que foram mantidos escondidos por diversas sucessões de regimes desde a idade média. Dentre eles estariam além de documentos oficiais, diários e periódicos, uma vasta coleção de crônicas populares dos séculos XVI e XVII. Desde a divulgação do achado, a comunidade cientifica se alvoroçou e o acesso aos documentos vem sendo disputado por pesquisadores e estudiosos de inúmeros países. Monton havia conseguido uma vaga na primeira expedição que foi lá fazer o levantamento do acervo, e havia podido ter em mãos informações suficientes para formular diversas teorias e pôr abaixo outras tantas. Porém o que mais lhe instigava no momento era esta história sobre a famosa peça de Varnhagen, já que era também ele, um amante da música. Agora se encontrava em um bom lugar na lista de espera para fazer um estudo mais demorado e direcionado dos documentos e estimava em dois ou três meses sua partida para Budapeste.

Ele me contou do que havia lido em alguns diários da época: que Varnhagen teria perdido a audição aos dezesseis anos de idade e que antes disso teria estudado música num conservatório por muitos anos. Havia chegado a ser bastante habilidoso com o cravo, mas sem demonstrar nenhum talento especial. Com a morte de seu pai, uma das vítimas da peste de 1536, teria sido forçado a abandonar a música e começar a trabalhar como ajudante na cozinha de uma família rica. As circunstâncias em que ele teria perdido a audição permanecem ainda um tanto obscuras, mas certamente se tratou de um acidente de trabalho. De toda forma, surdo e obrigado a trabalhar para sustentar a família, o jovem Milo Varnhagen teria desistido de qualquer pretensão musical. Seu cravo e suas partituras teriam sido empurrados para um canto e a sala de sua casa passara ainda a abrigar duas de suas irmãs com os filhos.

À época em que a peça foi composta Milo estava, portanto, na miséria; surdo dos dois ouvidos, havia deixado o conservatório e trabalhava cerca de quatorze horas por dia, voltando para casa somente para dormir. Durante o dia, seus sobrinhos corriam de um lado a outro, mexiam em seu cravo e rabiscavam suas partituras. Assim teria surgido “Der Barfusstänzer”. Segundo Monton, seria visível a diferença entre a caligrafia de Varnhagen, caprichosa e firme, e a que figura na partitura original. Esta, com uma letra infantil, tremida e cheia de desenhos tortos e linhas sem sentido ao redor do papel.

Um antigo professor lhe teria feito uma visita, como ele não estivesse em casa, decidiu esperá-lo e se deparou com a partitura rabiscada jogada em algum canto da sala, como Varnhagen demorava muito, ele foi embora. Levou consigo, porém a partitura original que permaneceu arquivada no conservatório durante quase três décadas. Varnhagen, assim como muitos de seu tempo, morreu na miséria, sem reconhecimento nem genialidade, no anonimato de uma cozinha rica enquanto sua família passava fome.

O caminho que levou este rabisco de música (Der Barfusstanzer ou “O Dançarino Descalço” em português, foi um título póstumo, datado de 1572 d.C.) a se tornar o marco inicial da história da música ocidental ainda são obscuros. Monton falou algo sobre o reitor do conservatório ter apresentado como sua a composição e sido bastante aplaudido na época, mais pelo seu prestígio que pela qualidade da peça tocada, o prestígio teria se transferido de tal forma da pessoa ao produto que após sua morte, tendo ele sido desmascarado, o prestígio passou da partitura outra vez para a pessoa, desta vez Milo Varnhagen. O autor real, uma criança cuja identidade Monton considera impossível de averiguar, e seu grande mestre, o acaso, permaneceram na obscuridade por todos estes anos.

A argumentação de Monton era muito convincente e eu não pude deixar de ficar perturbado. Escassos são os registros do que foi a música ocidental antes de 1572 d.C. Esta peça é o documento mais antigo de que se tem notícia e sua contestação põe abaixo tudo o que veio depois, afinal ela inaugurou um sistema. E era justamente isso que desejava Monton na Hungria, pesquisar os registros restantes do que foi a música antes disso. “Eu vou lá buscar a verdade e não volto enquanto não a tiver em mãos!”

Esta frase fez como um “click” em minha cabeça. Foi o que me fez desvendar a personalidade de Claude Monton. Ele era tido por muitos como um desconstrutor, por outros como um baderneiro que desejava apenas desestabilizar a academia, trazer a escuridão aonde havia luz, balançar os alicerces e destruir o edifício da ciência. Mas no fundo ele só queria poder confiar. Monton, mais que qualquer um de nós, sentia o balanço da terra. Sentia a precariedade dos alicerces sobre os quais foi construído o conhecimento humano, ele previa o seu desmoronamento e queria conduzir as reformas necessárias antes que tudo ruísse. Ele queria um chão onde pisar para por fim a toda a sua angústia. Mais que qualquer um de nós, Monton precisava da verdade.

Esta não foi a última vez que soube de Monton. Há cerca de dois anos ele me escreveu uma carta da Hungria. Dizia ter se apossado de documentos de valor inestimável, contava que havia tido de empregar métodos vergonhosos para chegar até eles, mas que enfim estudava música: a verdadeira música, fruto de estudos matemáticos avançados e não do acaso e das crendices humanas. Convidava-me a ir vê-lo e para comprovar o que dizia me enviava uma peça de sua autoria.

Era uma composição para piano. Elaborada segundo as novas (ou antigas) regras que ele estudava no momento. No dia em que recebi a carta analisei demoradamente a partitura. Estava escrita num ritmo complicado, mostrando que Monton ia além do estudo da música anterior a Varnhagen. Ele empregava seus conceitos de grandezas matemáticas e indicava o andamento e o ritmo em equações trigonométricas.

Eu poderia ter tocado sua canção caso tivesse dedicado algum tempo à tarefa de interpretar aquela confusa ordem de tons e ritmo, mas confesso que o temor venceu a curiosidade. Na época me faltava um semestre para concluir o curso de música na Universidade Federal e meu projeto de conclusão de curso já provocava suspiros por parte de meus orientadores. Eu era um gaitista primoroso e avançava a passos largos no estudo do piano. Estava perfeitamente confortável dentro do universo da música ocidental e pouco me importava se ele era real ou imaginário. Melhor ser rei no mundo da fantasia que mendigo no mundo real.

A partitura foi abandonada em uma gaveta após três dias sobre meu piano.

Um dia, quem sabe, a história se repete.

quinta-feira, junho 07, 2007

Microconto IX - Surpresa

"A essa hora da madrugada?" Pensou o velho antes de morrer.

domingo, junho 03, 2007

Além do Visível

(Este texto é uma versão aumentada do post Verde-Musgo e foi publicada na edição nº 75 de A Tardinha, no dia 17 de Março de 2007)
Helinho nasceu com certo defeito nos olhos que lhe ampliava o espectro de cores. Além das sete cores do arco-íris, via mais uma, a que vem depois do violeta. Seus pais ficaram, a princípio, alarmados com a situação. E foi somente após diversas consultas com especialistas e de uma bateria de exames que o médico lhes explicou a situação: O menino via além do visível para a maior parte das pessoas.

Trataram de compreender o filho, e fizeram o possível para que ele levasse uma vida normal. Tiveram de trocar de lavanderia algumas vezes, pois o sabão deixava as roupas ultra-violeta e a casa teve de ser pintada com uma tinta especial, escolhida a dedo por Helinho. A paciência dos pais não era porém, sem-limites e, algumas vezes, se esgotava.
- Não vou comer isso! é ultra-violeta!
- Isso é branco e se chama couve-flor! Trate de terminar seu prato ou vá direto para o quarto!

Embora nesse caso, o problema estivesse todo na couve-flor, Helinho chegou a detestar, por certo tempo, a cor que o fazia se sentir sozinho no mundo. Do que adiantava ver tudo mais colorido se não podia comentar com ninguém? Por um tempo, tentou limpar com agua e sabão, alcóol e até mesmo querosene, as manchas ultra-violetas de todos os objetos à sua volta. Mas ela inistia. Vinha por debixo da porta, numa manchinha de sabão, num brinquedo novo. Ou simplesmente surgia como um raio luminoso no escuro do quarto.

Até que um dia Helinho se deu por vencido. Como poderia lutar contra os próprios olhos? Acabou não só aceitando, como se encantando pelo mundo que só ele via. Achou o pôr-do-sol tão lindo com seus raios ultra-violetas iluminando as nuvens. Descobriu que de noite o céu não fica escuro, e sim de um ultra-violeta bem clarinho, e que, quando refletido no mar, o faz parecer-se com uma piscina de luz invisível. Só não entendia porque chamavam àquela cor, ultra-violeta, se violeta era, de todas as cores, a com que ela menos se parecia...