segunda-feira, fevereiro 26, 2007

O homenzinho verde

Nas águas mansas da baía, vai entrando um naviozinho. Desses navios pequenos e fortes que se usa pra puxar outros navios enormes ou plataformas de petróleo. É chamado de rebocador, e, apesar de sua força, vai navegando silencioso e tranqüilo.

Corta o espelho d’água com velocidade e levanta ondas à sua frente que vão deslizar até bater na praia, já bem menores. Nessas ondas que vão à frente do rebocador e que mais se parecem com um bigode a dar-lhe o ar de respeito e seriedade dos mais velhos, vai um homenzinho verde. Ele vai surfando à frente do rebocador para mostrar o caminho.

“É um Gnomo?”, perguntam uns, “É um Duende?”, perguntam outros. Não. E nem se trata de alguma entidade mística ou pouco provável. É somente um homenzinho verde surfando à frente do rebocador que entra na baía.

sábado, fevereiro 17, 2007

Oreste

Tshhhhhhhhh. Mais um vazamento! Pensou Oreste já impaciente enquanto se mexia por entre o emaranhado de botijões e tubos que havia se tornado seu quarto. Tinha de tapar mais este e verificar a pressão dos tanques para que não explodissem. Com um alívio passageiro, constatou que o garrafão de aço fundido agüentaria mais um pouco até que chegasse o próximo reservatório, encomendado por ele no exterior para conter a crescente ameaça invisível que destruía o seu quarto.

Oreste morava sozinho em um quarto perfeitamente quadrado, com paredes brancas e uma janela transversal sempre fechada por causa do ar-condicionado e do barulho da rua. Este quarto tinha sido, um dia, bastante aconchegante para os padrões de Oreste. Antes de se transformar no inferno de tubos e garrafas de ferro que empurravam-no cada vez mais em direção à parede e tornavam difícil mesmo o entrar e sair do quarto.

Isso tudo começou num dia impreciso, esquecido devido à pouca importância aparentada à época de seu acontecimento. Oreste estava sossegado, com a janela fechada como de costume e o ar-condicionado ligado de forma que não tivesse interferências de fora enquanto lia, deitado na cama, uma revista americana. De repente, um barulho lhe chamou a atenção, seguido de um cheiro desagradável que lhe pareceu venenoso. Era um buraquinho na parede junto à porta, no lado oposto ao da janela. Verificou com certo desagrado que se tratava de um vazamento de gás, mas não se preocupou. Tapou o buraco com um esparadrapo e voltou à sua leitura.

De fato o esparadrapo resolveu o problema por um tempo, mas não em definitivo, de forma que Oreste foi novamente surpreendido pelo vazamento de gás no momento mais inoportuno: durante o sono. Acordou quase asfixiado com o cheiro de gás e teve que desligar o ar-condicionado e abrir a janela para dissipar o veneno enquanto verificava com irritação que o buraco havia aumentado devido à pressão e o esparadrapo não dava mais conta. Ainda embreagado do sono interrompido, protelou outra vez a solução do problema, colocando no buraco uma bexiga inflável que encontrou na gaveta. Colou-a com o esparadrapo em volta do buraquinho e voltou a dormir. Mais uma vez esqueceu o problema, que só voltou a incomodá-lo no dia em que se deu conta de que a bexiga estava prestes a estourar.

Oreste tapou o buraco, que aumentava a cada dia, com mais uma e mais outra, e mais outra bexiga, até que já eram cinco, cheias e prestes a estourar. Era o momento de tomar uma decisão. A situação estava começando a incomodá-lo a sério. Além de ocupar espaço e enfeiar a parede, aquelas bexigas corriam o risco de estourar a qualquer momento e asfixiá-lo com o montante de veneno que, na época, já armazenavam. Mas Oreste andava ocupado demais com assuntos muito mais importantes que aquele vazamentozinho infame e resolveu, rapidamente, que ligaria uma mangueira do buraco a um botijão de gás vazio para que fosse enchendo aos poucos. Ocupava menos espaço que todas aquelas bexigas cheias, poderia guardar muito mais gás além de ser mais resistente e seguro. Ficou satisfeito com sua decisão, certo de que o problema não voltaria a incomodar tão cedo.

A partir deste momento a história de Oreste se torna repetitiva e desinteressante, visto que é velha conhecida de todos nós, repetida a toda hora em qualquer esfera social. Sempre adiando a solução do problema e tomando medidas de ultima hora a reboque dos acontecimentos, visando resolver tudo no curto prazo sem ter de se ocupar das coisas de forma mais ampla e profunda, Oreste foi ampliando seu reservatório ao longo dos anos.

E aquele vazamentozinho persistiu com a paciência própria das coisas medíocres. Com a certeza de estar à margem de qualquer prioridade por ser demasiado infame. E foi ganhando espaço e se tornando cada vez maior, até se tornar grande o suficiente para transformar o quarto de Oreste num imenso reservatório, cheio de garrafas e botijões que tentavam conter a sua investida silenciosa a ferro fundido.

Quando já não havia mais espaço para Oreste em seu próprio quarto, ele teve de se mudar para a cozinha, lugar onde não pisava havia anos. E, logo na primeira noite que passou alí, dormindo sentado numa cadeira dura encostada na parede, acordou sobressaltado por um pesadelo e deu com a cabeça na prateleira. Com um grito de dor verificou que sangrava e se levantou para buscar, na dispensa, um curativo. Era um mundo desconhecido para ele, as entranhas de sua própria casa. Para sua surpresa, não encontrou a gaze e nem a água oxigenada que procurava, mas ao lado do material de limpeza, Quatro registros redondos de ferro pintado de amarelo. Num deles estava escrito "gás".

Foi como uma segunda porrada na cabeça. Já que o registro estava aberto, ele só precisava fechá-lo com a mão. Seguiram-se instantes de indecisão. Oreste pensava no que seria depois, o que fazer com tanto gás guardado a tanto tempo em seu quarto de dormir. Mas antes que pudesse tomar qualquer decisão, um clarão tomou-a por ele. E ele soube nos eternos instantes que separam a vida da morte que agora era tarde demais.

sábado, fevereiro 10, 2007

Carta de suicídio

Não deixo a ninguém a interpretação de minha vida. E aos que me dizem que o homem alcança a imortalidade através da memória de seus atos notáveis, respondo com a minha morte. Morro para toda a eternidade e levo comigo tudo o que fiz. Que queimem os meus livros! Raguem minhas fotos! Que apaguem do mundo as marcas de meus passos! Não quero sobreviver.

Se através de seus atos sobrevive o homem, esse deve ser, então, o grande castigo por seus crimes. O purgatório, onde se vive através dos outros, sem controle de seus proprios atos, com suas palavras travestidas pela ideologia alheia e seus gestos utilizados sem acordo com seus princípios. Uma marionete nas mãos de seus inimigos até que finalmente caia no esquecimento. Meus crimes eu prefiro pagar no fogo do inferno.

Pois não viveu Cristo através dos padres que se aproveitaram de sua memória para pilhar, matar, e enriquecer-se. Destruindo civilizações inteiras em face da necessidade de lhes levar a palavra de deus. E nem viveu Lênin, lider da revolução popular mais importante da história recente, através do gigantesco mausoléu que impôs Stalin à sua memória, nem da utilização de seu nome com o fim de validar um regime militarista e autoritário. Assim não viverei eu, tampouco, através da mediação ativa da memória alheia. A fazer de mim bom, ruim, arrogante, humilde, forte ou fraco. A me reinventar de acordo com o que convenha a seus nefastos interesses.

Morro e levo junto a minha liberdade, condição essencial para que eu esteja vivo. A essencia fundamental de minha vida, levo-a comigo para o túmulo.

domingo, fevereiro 04, 2007

A próxima estação

A viagem seguia calma e silênciosa. Ele, afundado num livro de história , ela, imersa em pensamentos.

Se olhassem pelas janelas do trem, veriam o tempo se derretendo em frente aos seus olhos e escorrendo feito um rio sem fim em direção ao futuro. Um rio imenso e caudaloso. Afinal o tempo não começa e nem termina, e nele estão fundidas todas as emoções e memórias do mundo, formando caldo grosso e radiante. São mil cores, as que compõem o tempo. E caso se preste bastante atenção, é possível reconhecer um fato ou outro que ainda não se dissolveu completamente e bóia feito gelo em água.

As viagens para o futuro são muito mais rápidas que as viagens ao passado, por causa da resistência da correnteza. E quem estiver atento pode perceber rapidamente se está indo para a Frente ou para trás. Mas eles já haviam feito essa viagem inúmeras vezes e nesse momento estavam mais preocupados com seus reespectivos botões. Ele tentava lembrar em que ano morreu o último rei da frança, ela se perguntava quando nasceria seu primeiro neto.