segunda-feira, março 26, 2007

Sonhos que eu gostaria de ter tido

E um dia eu sonhei que voava. Que subia no alto de um prédio e dava um mergulho no vazio. Meu paletó se transformava numa grande asa de pano que ligava os meus pulsos à minha cintura. Meus ossos eram leves e o ar empurrava o meu corpo pro alto. Uma sensação incrível, como se a aerodinâmica tivesse sempre estado ali, esperando que eu a descobrisse. Eu pensava comigo mesmo que as aves é que estavam certas e achava tudo ótimo, tudo muito natural.

Vento no meu rosto, frio nos meus pés. Enquanto passo pelos edifícios, percebo que a cidade é cheia de recantos escondidos. Alguns prédios enormes abrigam, em seus quintais, verdadeiras florestas. São grandes áreas verdes com rios, lagos, mata densa e animais silvestres. Penso por um momento se isso não seria proibido, mas logo tudo se torna claro em minha memória. É a nova tendência das empresas de se preocuparem com o sono dos funcionários nos horários de almoço. E, observando com atenção, vejo mesmo uns índios montando redes entre as árvores.

Um desses "quintais" é tão grande, tão bonito e tem um lago tão azul, que eu resolvo dar um rasante. Inclino a cabeça para baixo e dobro as pernas suavemente. O mergulho, porém, é abrupto. Eu atinjo, numa fração de segundos, uma velocidade tão alta que mal posso me mexer. Reverter o mergulho é impossível. Eu quero voar, subir, frear. O chão se aproxima, meus pés estão frios, pânico! Em seguida é a vertigem e o baque. A água é dura e mole, e é o meu colchão. Volto do mergulho num pulo sobressaltado. Tudo escuro no quarto, meu coração disparado...

Terminado o relato ela me olha e pergunta mais alguns detalhes do sonho. Eu me enrolo um pouco pra responder e ela me diz que eu preciso sair. Que eu me sinto sufocado, que preciso de liberdade e outra dúzia de coisas a meu respeito que eu já sei de cor. Mas eu me sinto bem em ouvir isso de uma profissional. Quem sabe assim eu não saio da cidade um dia desses. Ela me diz que eu preciso de experiências reais, de matéria-prima pros meus sonhos. Mas que, no entanto, minha imaginação é muito fértil.

- Porque você não escreve essas coisas? Pergunta ela muito séria.
- Não sei, não tinha pensado nisso. Respondo, um tanto encabulado.
- Pode ser que ajude no tratamento.

Nos despedimos, até semana que vem, e eu deixo sua sala, no 28º andar. Enquanto espero o elevador começo a me imaginar escritor. "Sonhos que eu gostaria de ter tido" poderia ser o título do meu livro. Taí, "sonhos que eu gostaria de ter tido"...

Ilustração Rafael Borges

domingo, março 18, 2007

A andada dos caranguejos

Talvez seja o sal, talvez seja a lama, mas o fato é que os caranguejos têm, mesmo, a memória fraca. Poucos deles são capazes de lembrar o que fizeram no dia anterior e, muito menos, o que fizeram um ano atrás. Volta e meia, é possível encontrar um Aratu em suas tocas a lhes contar as mesmas coisas, repetidas vezes; e eles a ouvirem tudo com a atenção e o interesse de quem ouve uma grande novidade, em primeiríssima mão.

Num dia destes, o Aratu contou aos caranguejos uma noticia que se passava fora do manguezal, numa praia próxima. Toda a família de caranguejos ouviu, bastante interessada, à sua história mas logo que ele saiu começaram a esquecer o assunto. Um caranguejinho mais atento perguntou ao pai se o mundo era muito grande. Este olhou em volta e, vendo somente o mangue e nada mais, respondeu que não, que o mundo era aquilo ali que ele estava vendo. Um Siri que estava de passagem ouviu aquilo e ficou tão irritado com a ignorância do caranguejo que não pôde deixar de se intrometer na conversa: "Ora mais que falta de cultura!" Reclamou ele, com o papai caranguejo. O mundo é muito maior que o que todas as nossas cabeças juntas possam imaginar. O mundo não tem fim! Eu mesmo estou indo agora visitar um primo que mora na praia, depois do mangue. De lá da praia é possível ver a mata de um lado e o mar do outro. Somente o mar é tão grande que vai até onde a vista alcança, e dizem que quanto mais você nada atrás do seu fim, mais longe ele vai ficando. Ora! Vocês deveriam se mexer um dia desses, andar por aí, ampliar os horizontes, sair desse mundinho limitado. Não faz bem a ninguém ficar sempre no mesmo lugar, vendo todo dia as mesmas coisas e achando que a vida é só isso! Não me admira que se esqueçam de tudo, já que nunca fazem nada digno de lembrança!

Terminado o discurso o Siri seguiu seu caminho em direção ao mar, onde visitaria o seu primo Siri-branco. Mas deixou, no caranguejo, uma pontinha de inveja. Como falava bem esse siri, como conhecia o mundo e suas histórias, e eu aqui sem nunca sair do lugar, achando que o mundo é só isso. Sem saber nem mesmo responder às perguntas do meu filho. Aquilo não estava certo, e ele decidiu fazer algo a respeito. Não demorou muito e lá foi ele ter com os outros caranguejos do mangue. Repetiu-lhes o que se lembrava da fala do siri, contou sobre a imensidão do mar sem fim, falou sobre como seria importante, inclusive para a formação cultural dos caranguejinhos conhecer outras realidades, ver um pouco do que existe lá fora... Os outros ouviam abismados àquele discurso. Todos pensavam o mesmo, que o mundo era o que estava diante dos seus olhos e pronto. Alguns, inclusive, tomaram por sandice toda aquela falação, e foram para suas tocas, ouvir as velhas novidades dos Aratus.

A maior parte, porém, se entusiasmou e saiu em marcha para além dos limites do mangue. Seguindo rio abaixo, a primeira surpresa foi com o tamanho do próprio manguezal e do rio, que iam muito além da área pela qual eles costumavam se movimentar. Qual não foi sua surpresa quando, finalmente, alcançaram o mar. Era de fato muito maior que eles podiam compreender. Alguns se emocionaram, outros tremeram de medo diante de algo tão grandioso. E, assim, eles conheceram uma porção de coisas novas: Siris brancos de praia, os Grauçás que moravam na areia, os pequeninos vaza-marés, que tinham a boca maior que o corpo. Foram na floresta ver os Gaiamuns subindo as árvores e se descobriram primos próximos. Imaginaram que o mundo deveria estar, ainda, cheio de coisas a conhecer e ficavam olhando para o céu, abobalhados com as núvens.

Andaram pelo mundo durante um bom tempo até conseguirem encontrar o caminho de volta pra casa. Chegaram no mangue cheios de histórias, de novidades, cultura... Mas o tempo vai passando; e não se sabe se é o sal, se é a lama, mas o fato é que os caranguejos têm, mesmo, a memória fraca. E todos os Aratus do mangue conheciam a habitual andada dos caranguejos, que saíam todo ano para conhecer o mundo do qual já não se lembravam mais.

Ilustração Rafael Borges

domingo, março 11, 2007

A melhor companhia

Sempre que eu subia uma montanha, vinha alguém me dizer: menino, desce daí que você cai e morre! Acho que pra me meter medo. Mas eu não tinha medo da morte. Andava de mãos dadas com ela, a escolhia como companheira favorita de brincadeiras. Seguia por entre os penhascos, os pântanos, as cavernas; a morte ao meu lado, a me incentivar quando eu precisava, me carregando, por vezes, no colo. Os adultos me dizendo que eu podia morrer e eu pensando que de nada valeria a vida inteira sem conhecer a morte.

À medida que fui crescendo, me aproximei, cada vez mais, dela. Ela vinha junto com cada idéia, como um contrapeso: a companhia perfeita me oferecendo o mundo. Me contou certa vez que foi parte integrante de cada aventura vivida. Esteve em todas as grande conquistas, integrou os maiores exércitos, estimulou a procura dos grandes tesouros perdidos, ajudou a calcular todas as missões, jamais houve uma aventura sem sua presença. E eu lhe pedia mais. Queria ir mais longe, mais alto.

Voei junto às estrelas, me queimei nas brasas do sol, caí inúmeras vezes. A morte me estendia a mão, eu me levantava e seguia em frente. Tantos objetivos a vencer, a vida pela frente me parecia um desafio a superar. Eu queria viver mais, e a única que pôde me ajudar foi a morte.

Ilustração Rafael Borges

domingo, março 04, 2007

O mundo nas costas

Josias carregava o mundo nas costas. O que era um tanto inconveniente, já que o mundo era muito maior que Josias. Mas onde quer que ele fosse, ia curvado, levando aquela imensa bola azul apoiada em seus ombros.

Certo dia, um amigo lhe perguntou porque não colocava o mundo no chão de vez em quando, para descansar. Josias respondeu que o mundo não podia andar sozinho e que ele teria de leva-lo às costas ainda por um bom tempo.

E assim seguia Josias, curvado, com o mundo nas costas e o olhar perdido, triste, apontando para o chão. Até que um dia o mundo caiu e foi rolando e entrou num buraco de golf. Josias não percebeu. Continuou curvado, o olhar vago, triste, apontando pro chão. E o que é mais interessante: continuou sentindo o peso do mundo nas costas.

Ilustração Rafael Borges