quinta-feira, maio 31, 2007

Microconto VIII - Dos Horizontes

Ainda tem uma porção de coisas bonitas nos esperando, amor.

domingo, maio 27, 2007

O Mestre do Tempo

O sapo veio pulando pelo jardim. Era a primeira vez que Pedrinho via um sapo em sua vida. "Nossa", pensou, "que sapo feio!" Era muito mais feio que os sapos dos desenhos e dos livros de colorir. Pedrinho estava passando o final de semana na praia, mas, por causa da chuva, ficou o dia inteiro brincando dentro de casa. Agora que a chuva havia finalmente dado um tempo, ele saiu pra explorar o jardim. Seus pais estavam na cozinha preparando uma macarronada para o jantar e assistindo televisão bem alto. O menino explorava o pântano no qual tinha se transformado o jardim após a chuva. Havia poças d'água por todo lado e tanto barulho de bicho que mais parecia uma sinfonia. Foi quando ele viu o sapo feio se aproximar pulando.

Naturalmente Pedrinho quis vê-lo de perto. Tinha que aproveitar, pois dificilmente veria um sapo em seu prédio ou na escola. Ele foi chegando perto e, de repente, o sapo parou de pular. Pedrinho tomou um susto. O sapo não só parou, mas assumiu uma posição de estátua mística e congelou o tempo. Não se ouvia mais o barulho da televisão, nem o barulho dos bichos em volta, nada. Até o vento ficou quieto. Foi como se o mundo todo tivesse feito silêncio de uma só vez. Pedrinho ficou em dúvida se poderia se movimentar já que tudo o mais estava parado.

Olhou para o sapo e o bicho lhe disse que o tempo não estava correndo e, conseqüentemente, o espaço não existia. Pedrinho não entendeu e perguntou porque ele tinha parado o tempo. O sapo respondeu que tinha feito isso para poder conversar um pouco, porque estava se sentindo só e a passagem do tempo não lhe permitia parar. "Quando o tempo está correndo, você está sempre correndo contra ele", disse. Qualquer conversa se torna vaga e nada se desenvolve se você tem um fim marcado, se aproximando a toda velocidade. O sapo do tempo só conseguia conversar quando o tempo estava parado. Assim, o assunto fluiria naturalmente e terminaria quando tivesse de terminar, sem pressão. Aí, ele, que controlava o tempo, despausava e voltava a pular de poça em poça.

Pedrinho achou interessante o que o mestre do tempo lhe disse. Podia compreender bem o que ele sentia. Também detestava que lhe interrompessem quando estava brincando porque estava na "hora do banho", na "hora de escovar os dentes", na"hora de ir pra cama", na "hora de ir para a escola". Havia sempre uma "hora de alguma coisa" pra interromper tudo e ele raramente conseguia terminar alguma brincadeira por vontade própria. Então o menino ficou alí e conversou um bocado com o sapo mestre do tempo, até que os dois se cansaram. Não se cansaram fisicamente, pois estavam parados no tempo e era como se estivessem ali apenas por um instante, mas o assunto chegara ao fim e nenhum dos dois tinha mais nada pra dizer. Pedrinho lhe fez, então, uma última pergunta.

- Mestre do tempo, você é um cara tão poderoso, porque está em forma de sapo pulando de poça em poça, foi alguma maldição de bruxa?

o mestre do tempo respondeu que era muito mais forte que as bruxas e que nenhuma delas ousaria lançar-lhe um feitiço. Ele tinha nascido sapo, e se acostumou a comer insetos e pular de poça em poça, por isso não assumia uma outra forma

- É legal, você devia experimentar.

E assim os dois se despediram. Num instante, Pedrinho ouviu o grito de sua mãe:

- Pedrinhooooo, sai desse mato que tá na hora de comer!

O sapo atravessou pulando o jardim e sumiu pelo brejo.

quinta-feira, maio 24, 2007

Microconto VII - O Que Passou

Perdeu ainda mais tempo na tentativa de recuperar o tempo que havia perdido.

domingo, maio 20, 2007

O Escritor de Microcontos

O escritor de microcontos é um cara impaciente. Decidiu criar barba, pois não gosta de perder tempo. Esquece de cortar o cabelo em meio aos afazeres importantíssimos e volta e meia sai de casa sem se pentear por causa de um atraso imprevisto ou de um adiantamento de agenda. É um homem sóbrio e de maneiras apressadas, porém atencioso. Dedica sua extrema atenção ao minucioso planejamento de todas as suas tarefas. Está sempre decidindo, não o que pretende fazer, mas o que vai deixar de fazer hoje. Ele administra pendências. Caso você precise de algo, ele tem um bom coração: dedicará a você o tempo necessário - não mais, não menos - e depois riscará algo de sua lista de afazeres, antes de sair com pressa.

O escritor de microcontos não se considera um escritor. Ele é engenheiro, advogado, médico legista, gerente de uma mercearia. Ele tem uma vida cheia de coisas importantes e não liga para literatura. Sequer se lembra da última vez que teve tempo de abrir um livro. Se diz contente com as escolhas que fez, mas não consegue dormir à noite. As histórias lhe enchem a mente durante o dia, empatam seu raciocínio e povoam seus sonhos. E ele acorda ainda mais cansado do que quando foi dormir, cansado de viver intensamente 24 horas por dia. Acordado, vive sua vida conforme o plano; dormindo, vive todas as histórias confusas que não queria ter criado, mas que se recusam a ir embora.

O escritor de microcontos acorda já suado, se levanta e abre as janelas. Senta-se à mesa e escreve, um a um, todos os seus sonhos. Os pedacinhos de que se lembra de uns, a totalidade esquartejada de outros. São pedaços reduzidos e sintéticos. Ele sabe que as histórias estão dentro de cada um, e que basta uma pista para que as pessoas despertem para elas e vivam-nas por completo, cada uma ao seu modo. Ele escreve estas pistas em parte por crer na imaginação humana, em parte porque não consegue encaixar na sua agenda o tempo de escrever uma história inteira, em parte porque entende que as histórias estejam sempre inteiras e incompletas ao mesmo tempo e ele não gosta de dizer mais que o necessário. Mais que isso, o escritor de microcontos não concebe o esforço desnecessário. Ele viveu toda sua vida fazendo somente o que tinha de ser feito, comprimindo o tempo, espremendo os dias, otimizando os processos. O desperdício, principalmente de tempo, lhe soa como uma insensatez, um descabimento.

As horas vão passando e ele enche dez, onze, doze páginas de histórias que ocupam uma linha cada. Algumas precisam de mais palavras, outras de menos, mas todas levam apenas o número exato. Enquanto escreve, sua mente vai se esvaziando. Aquela angústia, aquele suor, aquele barulho, como um raio, passam por suas mãos e preenchem o papel. Não raro ele acorda no outro dia de um sono tranqüilo e reconfortante com o pescoço virado e a testa manchada de tinta de caneta. A cabeça sobre o papel e os contos terminados.

São dias bons e proveitosos, geralmente mais calmos que os demais. A mente está limpa, ele não confunde os afazeres, a agenda se articula como num jogo de tétris, cada coisa em seu lugar, cada peça em seu espaço. Nestes dias ele chega a se esquecer de sua identidade indesejada e secreta. O escritor de microcontos volta a ser somente um doutor em física nuclear, um neurocirurgião, um administrador de uma fazenda de avestruzes. Vive como planejou viver, até que as histórias voltem a consumir sua paz, seu juízo e seu tempo. Elas sempre voltam.

Mal sabe o escritor de microcontos quantos escritores de enciclopédia gostariam de ter sua capacidade de síntese. Talvez surgissem, então, microenciclopédias sobre cada tema do mundo. Elas teriam, todas, o formato de um pocket book, só que menorzinho. Cada homem poderia, outra vez, dominar todo o conhecimento existente, e a ignorância desapareceria da face da Terra. Talvez surgissem máximas explicando ciências inteiras. Talvez as ciências deixassem de ser ciências e se tornassem meros exercícios retóricos, repetidos pelos meninos do segundo grau para desenvolver a memória. E a única ciência estudada seria a da síntese geral das coisas, que poderia se chamar Sintetilogia.

Talvez nesse dia, o escritor de microcontos pudesse finalmente sentar-se e perceber que fez tudo o que queria num só dia, e que ainda lhe sobrava bastante tempo. Então ele se sentaria à mesa com toda a paciência, depois de ter almoçado longamente, lido o jornal e tomado um cafezinho. Talvez ele se pusesse, após alguns momentos contemplando um objeto qualquer, a escrever romances e histórias cheias de detalhes. Detalhes sem importância, que as pessoas poderiam muito bem intuir sozinhas, mas que eram os detalhes de um mundo que só existe em sua cabeça e que ninguém conhecia antes. Talvez não precisasse nem mesmo deixar de escrever microcontos.

Talvez.

quinta-feira, maio 17, 2007

Microconto VI - Fuga Velada

O estrangeiro entrou no bar. Pediu. Comeu. Bebeu. Saiu. Todos os olhos se voltavam não para ele, mas, através dele, para fora.

domingo, maio 13, 2007

Nas Ondas do Rádio

O vento não precisava soprar, a água não precisava molhar; bastava que houvessem ondas, e para isso serviam as do rádio mesmo. Miguel navegava nelas. Ia em seu barquinho de jornal, navegando numa estação, por uma música ou outra, até que a música acabasse e ele ficasse à deriva outra vez, boiando sobre um noticiário ou sobre um comentarista chato de esportes. Pegava, então, uma canção mais rapidinha em outra estação e mudava de rumo. Ia longe como o que, o mar era imenso e as estações levavam por caminhos desconhecidos, onde nenhum homem jamais esteve. Navegar era preciso; água, vela, leme, corda, bússola, nada disso era preciso. Ao menos para Miguel.

Ele ouvia lá embaixo o seu irmão mais velho, que lhe chamava e mandava ele descer dali. Dizia que não se pode navegar em ondas de rádio, porque as ondas do rádio não eram feitas de água. Eram apenas freqüências eletromagnéticas às quais convencionou-se chamar de ondas pelo formato que possuem quando desenhadas em gráficos para estudo. Não tinham nada a ver com ondas de verdade, das que tinham no mar.

Era como uma interferência. O barco girava, fazia que ia parar, a vela murchava, mas Miguel continuava firme, e o barco seguia. O irmão sabia que não ia adiantar desligar o rádio, pois as ondas continuariam no ar, mesmo sem um aparelho que as recebesse. E ficava em terra firme gritando para Miguel descer, sem coragem de ir atrás do irmão: era contra as leis da física.

Já Miguel fazia suas próprias leis da física, assim como fazia que não ouvia o irmão e deixava ele falando sozinho. Pegava uma estação que só tocava salsa e se mandava para o Caribe, navegava no ritmo quente da rumba e do tchá-tchá-tchá, tomava sol em praias paradisíacas, mergulhava num idioma estranho... Depois voltava pra casa, cheio de histórias de marinheiro, morto de cansaço, e ia dormir. E aí já nao precisava mais de canção de ninar nem nada, tinha tudo de cor e salteado, dançando em sua cabeça.

Ah, o mar.

quinta-feira, maio 10, 2007

Microconto V - Longe Demais

No meio do deserto se arrependeu, outra vez, daquela loucura.

domingo, maio 06, 2007

O Banco de Idéias


Parte I - Velhos Amigos

O sol entra no quarto sem pedir licença. Me diz que esqueci de fechar a cortina ontem à noite. Um pouco de preguiça me impede de levantar, mas o suor incomoda e eu não consigo mais dormir. Dane-se. A essa altura não volto a dormir de qualquer jeito. Limito-me a ficar enrolando, na cama, antes de acordar, deixando os pensamentos desordenados fluírem sem rumo certo, passeando pelos caminhos que me trouxeram até aqui. Faz, tudo, tanto tempo... São fatos que não merecem nota nem lembrança, talvez exame; com exceção de um deles: o que está relacionado ao banco de idéias.

Este objeto, que entrou na minha vida acidentalmente, num momento de baixa, é um dos muitos capazes de pôr à prova os limites da sugestão. Afinal existem coisas entre a realidade e a imaginação que ainda nenhum lingüista foi capaz de nomear, e que só a sugestão é capaz de esclarecer minimamente.

Estava numa das piores fases de minha vida. Uma separação sem grande importância me afetou mais do que devia, me jogou no fundo do poço. Talvez fosse o presságio da espiral de infortúnio que viria pela frente. Desempregado, tive de voltar à casa da minha mãe; para ajudar a pagar as contas, aceitei uma ocupação que afastou de uma só vez o fantasma do desemprego e o meu amor próprio. Não tinha dinheiro para nada, mas tomava todos os dias uma dose de Gim no Alvitre’s antes de ir para casa. Para me ajudar a dormir.

Foi numa dessas noites solitárias que me apareceu o Gonçalo, de terno branco e chapéu. Entrou no bar como se fosse um personagem de minissérie, saído de um outro tempo. Apressado, pediu uma dose de Campari e se sentou - por uma dessas coincidências que quase põem abaixo meu agnosticismo - do meu lado. Olhou em volta antes de dar o primeiro gole e me reconheceu de pronto.

Gonçalo havia sido meu colega nos primeiros semestres da faculdade. Nós costumávamos sair da aula e ir andando até a praia, onde conversávamos por longas horas. Enquanto durasse a garrafa de whisky. Eu não tenho grandes lembranças da faculdade, tinha poucos amigos, era introspectivo, chato. Gonçalo foi meu grande companheiro de turma até o dia em que largou o curso e sumiu no mundo. Ele dizia sempre que tinha nascido pra ser rico. Abandonou a carreira assim que percebeu que não chegaria a lugar nenhum. Tinha algum senso de planejamento, e com certeza um grande senso do que seria perda de tempo ou não. Eu era, ali, a prova viva.

Apareceu naquela noite, quase irreconhecível. Muito mais gordo, de bigode e paletó de linho. Dava a impressão de estar muito bem, apesar da agitação. Esta, porém, vinha desde os tempos da faculdade. Gonçalo era quase hiperativo, não ficava quieto, falava sem parar e tinha um estoque interminável de idéias esdrúxulas, apesar de algumas espantarem mais por pertinentes. Devo admitir que aquela noite não estava com o espírito pronto para reencontrar antigos amigos, menos ainda os que haviam dado certo. E ouvia o Gonçalo sem empolgação enquanto ele me contava tudo o que lhe sucedera desde que nos perdemos de vista.

Tinha passado por mais três faculdades, ido e voltado da Europa, aberto meia dúzia de empresas fantásticas e falido a maior parte delas. Agora era o feliz proprietário de uma promissora granja na cidadezinha de Espigão. Enquanto narrava seu sucesso, fazia varias alusões a um objeto a que chamava “o banco”. Em certo momento consegui interrompê-lo e perguntar que banco era esse de que tanto falava.

Parte II - Um Futuro Brilhante

Foi aí que tudo começou. O Gonçalo já tinha tomado três doses de Campari em menos de meia hora de conversa e, no momento em que lhe perguntei do banco, ele fez sinal para que o garçom nos trouxesse mais duas doses de cachaça. A sua, tomou de um só trago antes de começar a falar. Contou, então, que o banco havia mudado sua vida. Atribuiu a ele a fabulosa idéia de criar galinhas, idéia que não é para qualquer um, veja bem, ele mesmo com tantas idéias fabulosas não a teria tido, jamais, sem ajuda de tal banco. Pois que na época brigou com a família toda. Os parentes teriam tentado impedir que enterrasse seu dinheiro em tal loucura, mas de nada adiantou. Estava decidido. Foi para o interior e investiu tudo - o que tinha e o que não tinha - na granja.

E Voilá! Agora estou muito bem, o povo da cidade me chama coronel. Não posso me dizer rico, pois ainda tenho alguns empréstimos a pagar, de negócios anteriores, mas do jeito que as coisas andam, em breve terei o suficiente para comprar o Acre. E riu muito de sua própria piada. Um riso alto e rouco que terminava em tosse. Enquanto isso, eu contemplava o fundo do copo de cachaça refletido sobre o balcão.

- Foi a melhor idéia que já me ocorreu, parceiro. Mas e você? Me conte de sua vida.

A conversa chegava finalmente no ponto que mais me incomodava. Minha história estava cheia das grandes aspirações e de um futuro promissor que começou a se desfazer em frente aos meus olhos logo que terminei a faculdade. As contas não pagas testemunhavam contra o mito de minha grande capacidade, tão sustentado por minha mãe em outros tempos, e derrubado sem misericórdia pelo fracasso em que me encontrava. As grandes idéias, fabulosas e criativas, que eu tive em minha vida ficavam vermelhas de vergonha diante da simplicidade de uma criação de galinhas. A verdade é que não consegui arrumar motivos suficientes para me convencer a não ir atrás do tal banco de idéias, quando Gonçalo insistiu para que eu fosse.

O banco de idéias ficava numa cidadezinha chamada Espigão, a mesma da granja. A melhor forma de chegar lá era indo de carro até uma cidade próxima e pegando, de lá, um barco de carreira. Gonçalo tinha que ir resolver uns negócios naquele final de semana e me levou junto. No caminho me contou, entre outras coisas, a história do objeto.

Parte III - As Idéias Vêm de Fora

O banco de idéias teria chegado a Espigão no início do século passado, trazido por um marinheiro americano. Não se sabia muito sobre a vida do marinheiro, só que chegou e alugou um quarto na pensão da cidade, deixando-se ficar por ali até a morte. Não tinha outra distração além do poker, que ensinou aos outros aposentados da cidade. Jogavam embaixo de uma amendoeira, na praça central, apostando grãos de feijão seco. Contava histórias duvidosas sobre seus feitos na guerra civil e atribuía sua criatividade ao tal banco, que jamais havia abandonado. Morreu sem aviso prévio, certamente de velhice, enquanto esperava a dona da pensão para lhe fazer o pagamento do mês. Ela o encontrou já frio, no momento em que chegava da feira de sábado.

Como o marinheiro não tinha herdeiros, o banco passou a ser disputado por seus companheiros de poker e pela dona da pensão. A disputa causou um rebuliço tal na cidade que o prefeito teve de interferir, confiscando a peça, que passaria a fazer parte do tesouro municipal de Espigão.

O banco de idéias ganhou este apelido a partir das histórias do marinheiro. Além dos grandes feitos que levaram à vitória yankee na guerra de secessão, ele atribuía ao objeto a origem de inúmeros inventos da modernidade: A locomotiva a vapor, a luz elétrica, o ferro de solda, a cidade de Las Vegas... A tradição continuou entre os cidadãos de Espigão que lhe atribuíam outras idéias ilustres como a fibra ótica e o plano real. Seus idealizadores teriam feito uma rápida e inspiradora visita à cidade poucos dias antes da divulgação dos inventos, o que podia ser comprovado no livro de visitas do museu do tesouro municipal, onde se encontra o banco de idéias.

Eu escutava estas histórias e me perguntava em silêncio o que estava fazendo ali. O Gonçalo intercalava a história do banco com a narração de suas intenções de comprar um jatinho ou helicóptero que o levasse direto à granja, sem precisar desse negócio de barco, atraso de vida. Dizia volta e meia que não gostava de ter amigo pobre. Amigo pobre só serve para pedir favor. Por isso me trazia ali, porque não queria mais um lhe pedindo favores. E ria muito de suas próprias piadas, e acabava se engasgando e tossindo. Sem dúvida um grande coração, o Gonçalo. Eu me consolava pensando que sair um pouco da cidade haveria de me fazer bem, que o mar me ajudaria a recuperar a serenidade, e que a gente tem de fazer alguma arbitrariedade de vez em quando, para não morrer de depressão antes dos quarenta.

Espigão tinha uma igreja mal pintada com a frente virada para o rio. Atrás dela, uma rua pavimentada que cortava a cidade e terminava na rodovia estadual, interditada desde que qualquer um ali pudesse se lembrar. As ruas transversais eram de barro com umas casinhas todas iguais coladas umas nas outras. Algumas sem reboco, algumas de sapê. Por entre as poças d’água, brincavam crianças descalças e barrigudas. Um ou outro cachorro se espreguiçava na porta das casas. À medida que íamos passando as pessoas saiam na janela para olhar. No centro da cidade havia uma praça onde ficava a prefeitura – único prédio com a pintura em dia - e o museu do tesouro municipal. Nessa praça pude reconhecer a pensão onde o marinheiro americano dormia, e à frente uma amendoeira debaixo da qual velhos jogavam dominó em silêncio, com o tabuleiro sobre as pernas.

Tudo me pareceu muito pobre, muito silencioso e perdido.

Parte IV - O Banco de Idéias

Em lugar algum reconhecia o Eldorado da criatividade em que o banco de idéias deveria ter transformado aquele lugarejo. Por que viviam todos nessa pobreza se tinham em mãos a ferramenta de sua transformação? O Gonçalo parecia não notar o meu desconforto e seguia falando de suas histórias e dando risadas altas que acabavam numa tosse seca e irritante. Me conduzia para o museu do tesouro, onde eu deveria sentar no banco e ficar ali durante o tempo que desejasse. Não precisava ter pressa, dizia, além do que ele tinha alguns assuntos a tratar na granja e voltaria pra me buscar no final da tarde. Então pegaríamos juntos o barco de volta. Mas até lá eu já seria um novo homem. Iria embora carregando o germe da mudança, o mais precioso dos bens, que é a idéia.

Eis que finalmente chegava ao maravilhoso banco de idéias, objeto de minha jornada. Era uma peça antiga, com o estofado de veludo vermelho desbotado como se tivesse tomado muito sol e a madeira escura pedindo uma demão de verniz. Apesar disso, era uma cadeira bonita, no estilo clássico. Via-se que em outros tempos teria sido bastante confortável. Antes de terem-lhe apodrecido as molas e o pano, antes de a madeira, ressecada, ter perdido a flexibilidade. Na parte de baixo, tinham lhe colocado uma urna de madeira barata que contrastava muito com a original. A urna era trancada por um cadeado e possuía uma fenda no alto por onde o dinheiro deveria entrar. Pensei que esse deveria ser o motivo de ser chamado “banco” de idéias, apesar de que já esperava uma taxa de manutenção para quem desejasse sentar. Mesmo assim, fiquei surpreso quando um rapaz veio me cobrar os R$ 87,40. Naquele momento, porém, já estava bambo de sono e paguei sem protestar.

Acontece que enquanto observava aquele objeto estranho, fui acometido por uma incrível vontade de me sentar, como se minhas pernas perdessem a força. Uma fadiga mental que chegava a me dar tontura e excedia em muito o natural cansaço da viagem. Senti uma vertigem, como se fosse desmaiar. A idéia de que não deveria ter pago aquele absurdo cortou minha mente por um segundo antes que eu adormecesse.

Caí em sono profundo. Sonhei a princípio que o Gonçalo começava a crescer e crescer e que engolia a cidade de Espigão e depois ficava vermelho e explodia. Sonhei que escrevia uma carta para a minha mãe pedindo ajuda e era censurado pelo Gonçalo que apontava para as idéias que caiam do céu. E elas caiam aos montes, todas escritas em pedacinhos de papel picotado cor de laranja. Eu tentava, em vão, segurar uma que fosse, mas elas escorriam por entre meus dedos e se amontoavam no chão antes de derreter e melar tudo. Sonhei mais uma dúzia de sandices que poderiam de fato ser interpretadas como grandes idéias que me fizessem rico, ou que simplesmente mudassem os rumos de minha vida. E quando acordei daquele torpor, na cama de minha casa, já tinha se passado tanto tempo que eu nem lembrava mais qual delas fora eleita. Nem se havia dado realmente certo. Ponderando a esse respeito, agora, acho que sim. Que no fim das contas não só o banco, mas cada pedra em que eu pisei naquela viagem e ao longo de minha vida toda contribuiu, de alguma forma, para que eu acordasse agora, com o sol na minha cara, sem poder mais dormir.

quinta-feira, maio 03, 2007

Microconto IV - Realidades

Sua vida era um sonho. Quase perfeita. Lamentava apenas ter de sonhar, toda noite, com a realidade.